quinta-feira, 8 de julho de 2021

Isso é Amor!?

 Pedi um amor e ele me deu um bolo mofado. “Eu pedi amor”, disse.


- Isso é amor. 

- Mas não vai me fazer mal? 

- Talvez.


Olhei e novo e percebi uma larvinha de mosca saindo da cobertura.


- Vai querer ou não? – Ele olhava a larva também.

- Não sei. – A larvinha agora afundava cada vez mais no bolo. 

- Eu não vou ficar parado o dia todo aqui, sabe.


Lembrei que não sabia cozinhar e levei o bolo para a casa. Primeiro tentei tirar tudo que se movia na cobertura, mas era impossível . Me contentei em raspar o mofo, fechar os olhos e engolir uma garfada.


Vomitei.


Dormi com o estômago roncando e acordei com dor de barriga dos infernos. Não saí de casa nos próximos três dias: sem amor, não tinha vontade de tomar banho nem de escovar os cabelos. Não queria olhar o céu e nem os olhos das pessoas. No quinto dia sem amor, não quis abrir as pálpebras muito menos as janelas da casa.


Prestes a perder as forças, olhei para a mesa e resolvi tentar de novo. O estômago reclamou, mas não devolveu. O intestino resolveu não opinar. Fui dormir indigesta e ao mesmo tempo aliviada. Pela manhã, as maquiagens do banheiro voltaram a fazer sentido. As roupas no chão pediram para serem penduradas. A maçaneta da porta pedia para ser girada e eu obedeci.


A cada passo, sentia o estômago revirar, mas também sentia que estava viva. Segui na rua disfarçando uns arrotos enquanto olhava vitrines.


À noite, resolvi encarar o bolo de novo.


Ele não pareceu tão ruim quanto no dia anterior. Na verdade, olhando de lado nem dava para ver a parte feia. Segui comento o bolo, segui com o estômago revirado e mais importante: segui com vontade de entrar no ônibus e pagar minhas contas.

Até que o bolo acabou.


Preocupada, fui até ele pedir mais amor. O bolo que ele me entregou estava coberto de moscas.


- Está fedendo demais. – comentei. 

- É o que eu tenho.


Não consegui colocar sobre a mesa da sala, já que atraía mais moscas. Botei dentro do forno e cortei uma fatia: o cheiro era insuportável. Tampei o nariz aproximei o garfo da boca, tentando não mastigar as moscas mortas. Sabendo que não poderia ficar sem amor e nem me livrar de todos os insetos, engoli. O estômago não roncou nem a garganta contraiu: já estavam habituados.


Quando o amor acabou, ele me entregou um prato fundo.


- Mas isso é vômito! 

- Eu chamo de amor.


Entendi que era bolo vomitado e resolvi guardar na geladeira. No dia seguinte provei uma colherada antes de ir trabalhar, e, para a minha surpresa, eu já não sentia mais gosto de nada. Tomei outra 

colherada à noite, pra garantir que iria ter vontade de tomar banho e sair com meus amigos.


No dia seguinte tive um pouco de febre, mas segui dando umas colheradas.

Dois dias depois, a cabeça doeu. 


A febre voltou.

A garganta inchou.


Sem conseguir engolir o amor, fechei as cortinas e esperei a morte bater. Quando ouvi o som da campainha, suspirei aliviada.


Mas não era ela

.

Não era alguém que eu conhecesse. Tinha cabelos encaracolados e trazia um prato com uma espécie de massa branca. Leve, limpa, tinha cheiro de primavera.


- Isso não é amor. - Eu disse.

- É amor, sim. - Parecia surpreso. 

- Não, não é. - Eu ri.


Os olhos dele encheram de lágrimas. Antes que eu pudesse mudar de ideia, levou a torta de creme embora.


Talvez eu deva aprender a cozinhar sozinha.


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(texto escrito por Natália Nodari e publicado originalmente na página O SEGUNDO CU.


osegundocu.com.br

domingo, 1 de setembro de 2013

Porque ninguém vale mais do que a sua paz

Garganta fechada, estômago embrulhado, mãos suadas, falta de apetite, insônia. Um médico ficaria preocupado com tais sintomas, afinal, pode ser uma nova gripe, um novo vírus. E é. De certa forma. As unhas roídas, a carne dos dedos sangrando, derramando em cada gota desse sangue amargo um resquício da angústia que desola milhões todos os dias. Ah, o poder de um telefonema não atendido, de um SMS não respondido, de um sorriso não correspondido. É devastante. Pessoas convivem com essa bomba relógio diariamente, esse tic tac que não te abandona nem em um show barulhento. E por mais humano e natural que seja ficar nervoso, de vez em quando, é preciso lembrar que essa adrenalina, essa fogueira na barriga, precisa uma hora se apagar.

A vida é cheia de pessoas. Ser gente é assim mesmo, se relacionar. A gente começa desde cedo a ter contato, a depender do outro. Quando crianças, passamos de mão em mão, sem saber andar. Nossos primeiros grunhidos são emitidos na ânsia de dizer algo. Porque sempre queremos dizer algo a alguém. Eis eu aqui, dizendo algo a alguém. E esperamos, em troca, uma resposta. Qualquer que seja. Mas não somos preparados para sermos ignorados. Não somos instruídos a encarar nosso próprio silêncio, a nos olharmos de cara lavada no espelho do banheiro às 3 da manhã. E principalmente, não somos ensinados a ser autossuficientes.



Que fique claro, de antemão, que não se trata de não contar com ninguém. Não se trata de ser sozinho. Mas sim de, se for o caso, conseguir viver sozinho, em paz. Que seja possível tocar a vida após ser ignorado, chutado, trocado. É assim mesmo, passa no final das contas. E, por mais clichê que seja, a vida sempre traz algo melhor depois. Nada é insubstituível. Nada é maior que a sua paz, que a sua satisfação consigo mesmo. E se alguém está tirando seu sono, sua fome, sua energia, aproveite essa “tiração” de coisas e tire essa pessoa da sua vida. Não vale a pena sofrer. É óbvio que a gente sofre, chora, é inevitável. Mas não se permita passar muito tempo assim. Não é certo olhar para trás e se lembrar somente dos momentos de dor. Não é certo que uma pessoa tenha importância tal na sua vida, que uma ligação não atendida faça com que você perca todo o seu dia. Seu bem estar agradece, e seu coração também.

Então tire o dia pra fazer o que você gosta, pra se conhecer melhor. Tome um banho quente, passe aquela loção cheirosa no corpo, vista aquela roupa leve e que te faz sentir bem, desligue o celular e saia. Permita-se ficar só, ouvindo os sons da cidade, vá pra um lugar remoto, admire a paisagem e contemple o mundo, contemple a sua paz. Olhe para imensidão e se enxergue como só mais um ponto nesse universo gigantesco. Depois de se localizar, enxergue a sua dor como sendo menor do que você e, se você é pequeno perto do mundo, imagina a sua dor. Então você vai ver que nada é tão angustiante assim. Depois levante-se e experimente se sentar em uma mesa de bar, em uma cafeteria, sem ninguém. Pegar o cardápio e poder escolher o que quiser, sem se preocupar com o tempo para analisar as possibilidades. Ninguém vai estar esperando sua escolha. Só depende de você. Com calma, deguste o que pedir. Sinta os sabores. Sem olhar o relógio, sem se preocupar com a hora marcada. Seu compromisso maior tem de ser sempre com você. A paz interior é o bem mais precioso que você pode cultivar. E por mais que o mundo seja cheio de estímulos, às vezes, é preciso desacelerar. Deixe essa bomba de anseios, medos, carências e neuroses que está morando em você explodir de uma vez só. E com o perdão da paráfrase daquela canção do Gil, talvez essa bomba sobre você faça nascer um você de paz.
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Publicado 
originalmente

sexta-feira, 16 de agosto de 2013

A vírgula invisível

"Por fim, a vírgula invisível. Ela talvez tenha sido a minha grande descoberta existencial. Percebê-la pressupõe certa dose de modéstia e humildade – e pressupõe, também, entender a gentileza do outro. Às vezes a pessoa diz assim: eu não quero namorar. A vírgula invisível esta lá, escondendo o resto da frase: com você. Eu não estou com vontade de transar (,com você). Eu não quero dormir tarde (,com você). Eu não quero enganar o fulano (,com você). E por aí vai. Vocês entenderam."

- ivan martins -

na íntegra na Revista Época
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Ivan Martins
é editor executivo
da Revista Época,
onde escreve às
quartas-feiras.

quarta-feira, 31 de julho de 2013

Animais



“Nós precisamos de um conceito mais novo, 
sábio e talvez mais místico dos animais. 
Longe da natureza, e vivendo através de artifícios complicados, 
o homem na civilização vigia as criaturas através do vidro do seu conhecimento, 
e vê, portanto, os detalhes de uma pena, mas uma imagem geral distorcida. 

Nós os padronizamos por serem incompletos, 
pelo seu trágico destino de terem se formado tão abaixo de nós. 
E nisto, nós erramos gravemente. 

Os animais não podem ser avaliados pelo homem. 
Num mundo mais velho e mais completo que o nosso, 
eles se movem completos e confiantes, 
dotados com extensões dos sentidos que nós perdemos, 
ou nunca possuímos, guiando-se por vozes que nós nunca ouviremos. 

Eles não são irmãos, eles não são lacaios, eles são outras nações, 
presos conosco nesta vida e neste tempo, 
prisioneiros do esplendor e trabalho da Terra”.
- henry beston -

terça-feira, 30 de julho de 2013

O amor e a morte

"Em que momento uma flor de lótus começa 
a nascer dentro de quem amamos? De nós? 
Desde sempre, talvez seja a resposta mais correta. 
Não sabemos quando ela vai florescer carregando 
com ela aquilo que chamamos de real. Mas sabemos que vai. 
E quando ela floresce dentro do corpo que amamos, 
o que é lógico, rotineiro, deixa de fazer sentido."



por Eliane Brum

No filme A Espuma dos Dias, Colin e Chloé se casam e, logo depois, uma flor de lótus nasce no pulmão direito dela. O filme surreal de Michel Gondry não foi um sucesso nem de público, nem de crítica, e já está escorregando para fora da programação dos cinemas no Brasil. “Exagerado, pirotécnico demais” é o comentário mais frequente. Baseado no livro-cult publicado pelo francês Boris Vian em 1947, A Espuma dos Dias fala da paixão solar que fenece no casamento e na linha de montagem do capitalismo industrial. Fala de amor e de morte. E a razão pela qual não consigo me esquecer dele é a flor de lótus que desabrocha no pulmão de Chloé. Essa imagem terrível e bela da flor branca dentro do corpo de quem se ama.

Em que momento uma flor de lótus começa a nascer dentro de quem amamos? De nós? Desde sempre, talvez seja a resposta mais correta. Não sabemos quando ela vai florescer carregando com ela aquilo que chamamos de real. Mas sabemos que vai. E quando ela floresce dentro do corpo que amamos, o que é lógico, rotineiro, deixa de fazer sentido. No filme, os objetos se movem, a campainha tem pernas e sai correndo pela casa quando alguém a toca e enguias deslizam das torneiras. Isso é mais plausível para quem perde seu amor do que a enormidade do que acontece dentro de um corpo que é referência espacial na geografia cotidiana, de um corpo que às vezes é a própria casa, a única que queremos habitar.

Trabalho com o tema da morte há alguns anos e percebo que para muitos que perdem – e se começa a perder ao abrir o exame e descobrir que há uma flor de lótus em alguma parte irremovível ou com galhos longos demais – torna-se difícil viver num mundo em que os objetos são inanimados e as enguias só são vistas em filmes da National Geographic ou em pratos de restaurante japonês caro. Há um surrealismo no mundo que foi transtornado pelo advento da flor, mas que o nega, comportando-se, junto com todos os outros que por ele andam, como se não estivesse para sempre corrompido pela morte.

Nesse mundo transtornado pela flor, só haveria um cartaz possível para levar a um protesto na Paulista. Ou na Brasil. Ou na Champs-Élysées ou na Praça Taksim. “Tem uma flor de lótus no estômago do homem que eu amo”. Olho para essa mulher que acaba de descobrir que ficará só, a escuto e a imagino solitária, patética, segurando uma cartolina tosca na avenida. Nua entre 20 centavos, Copa, SUS, Renan Calheiros, Belo Monte. Nua e louca empunhando a única denúncia que todos nós faremos um dia, a denúncia tão inescapável quanto inútil da condição humana.

Quem descobre a flor de lótus no corpo de quem ama espera a cada manhã por um sinal de que o mundo de fora vai espelhar o de dentro. De que ao entrar no elevador do prédio não haverá um vizinho com seu cachorro, mas um elefante cor-de-rosa. Confrontada com a lucidez da condição humana, só é possível encontrar lógica em elefantes cor-de-rosa. Na padaria, na fila do pão, a expectativa dessa mulher é de que a moça tenha cauda de peixe, como uma sereia em terra firme, e o pãozinho francês pisque para ela da prateleira com pestanas tão longas quanto as de uma lhama. Em vez disso, nada acontece. A moça do pão é fria, quase ríspida. Ela então gagueja. Não sabe mais se pede os dois pãezinhos de sempre, porque ele gosta de pão novo, ou se pede três, por causa da flor, agora que a relação deles se tornou um triângulo. Pede dois, porque sabe que o mundo só aceitará o pedido de dois, mas sabe que está errado. E sabe que está errado porque o que não sabe é como fará quando tiver de se arrastar até a padaria para pedir um pãozinho só. Há décadas essa mulher não sabe como é pedir um pão só. 

Conheci um homem que tinha medo da flor dentro do pulmão da sua mulher. Ele não imaginava o que havia lá como uma flor, mas vou chamar assim aqui. Ele nunca pôde dizer o que era ou que forma tinha. Mas quando se deitava na cama com ela à noite, escutava a respiração da coisa ou da flor. E não podia dormir. Esgueirava-se para fora da cama e passava o restante da noite assistindo a filmes na TV da sala. Perto do amanhecer ele voltava, e talvez ela só fingisse não perceber. Ele a abraçava, como fazia havia mais de 20 anos, mas não sabia a quem pertencia o coração que batia no peito dela. Numa dessas quase manhãs em que tinha seguido esse ritual agora rotineiro, dormiu e sonhou que acordava. Abria os olhos e não havia mais ela. Só a flor ao seu lado na cama – ou o que ele não ousava representar. 

Uma mulher agarrou meu braço um dia na porta do quarto do hospital onde tratavam a flor que agora fazia fotossíntese no tórax do seu marido. “Você sabe que eu sempre me irritei porque  meu marido deixava a roupa jogada no chão do banheiro quando ia tomar banho?” Eu sei, mas não faz mal, arrisco. Eu também me irrito com o meu. Ela nem me ouviu, não estava contando que eu dissesse nada. “E agora, antes de vir para cá, eu esperava que ele fizesse isso. E quando ele fazia, eu me trancava no banheiro e chorava, porque não há nada mais lindo do que as roupas dele jogadas no chão.” Eu me acovardo, tenho pressa de ir embora. Mas ela ainda não terminou e suas mãos são garras no meu braço. “Eu sei que é ridículo, mas só penso nisso. Que ele possa voltar para casa e jogar as roupas no chão do banheiro. Você acha que eu estou ficando louca?” Eu garanti que não, eu não achava. E não achava mesmo. “Você acha que ele vai voltar para casa?”

A resposta para essa pergunta veio horas depois. Ele morreu na madrugada, como tantos. Para quem perde, as madrugadas são as mais perigosas, descobri naquele hospital. Eu a vi sentada na cama, de costas para a porta, as sacolas arrumadas, uma réstia de sol infiltrando-se pela janela. Não consegui entrar nem dizer nada. Eu só queria sair dali e correr para casa para me assegurar de que o homem que eu amo tinha largado a roupa no chão e, ao contrário de todos os outros dias, amá-lo mais por isso.

Como capturar esse momento, um segundo antes da flor desabrochar? Como perpetuar a ilusão? Ou a ignorância? Algo do que é mais belo na literatura e no cinema foi feito como gesto de captura do amor levado pela morte. Como as imagens que Agnès Varda fez do marido, o cineasta francês Jacques Demy, ao filmar a pele do homem amado e doente em Jacquot de Nantes. O homem que ela perdia, mas cuja pele esquadrinhou, cada poro para sempre ali. Imagem, impalpável, mas ali. Ou naquele que, para mim, é o melhor livro de Lya Luft, O lado fatal, em que ela transforma em poesia a dor pela morte do psicanalista Hélio Pellegrino. Ou o homem anônimo que só planta rosas, já que falamos de flores, para levar ao túmulo da mulher. Cultiva vida no seu jardim para levar a ela, numa tentativa de se rebelar a cada semana com a morte que a silenciou. Como se dissesse: eu vou dar vida a você, alguma vida, ainda que tenha de deixá-la sobre o seu túmulo. 

Volto para casa depois de assistir à Espuma dos Dias e sinto um medo irracional das flores que me rodeiam. Olho desconfiada para as orquídeas que há anos são a moldura da minha janela e que me ficam às costas enquanto escrevo. Quando a flor de lótus desabrochar em mim ou no meu amor, não digam que enlouqueci quando eu afirmar que há enguias nas torneiras ou hipopótamos voando junto com os aviões de carreira. Não há nada mais surreal do que o amor e a morte.


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Eliane Brum, 
jornalista, escritora 
e documentarista, 
escreve às segundas-feiras 

segunda-feira, 15 de julho de 2013

De volta ao começo

E o menino com o brilho do sol na menina dos olhos
Sorri e estende a mão, entregando o seu coração
e eu entrego o meu coração

E eu entro na roda e canto as antigas cantigas
de amigo irmão, as canções de amanhecer, lumiar e escuridão

E é como se eu despertasse de um sonho que não me deixou viver
E a vida explodisse em meu peito com as cores que eu não sonhei
E é como se eu descobrisse que a força esteve o tempo todo em mim
E é como se então de repente eu chegasse
ao fundo do fim, de volta ao começo.
- gonzaguinha -

quarta-feira, 10 de julho de 2013

Infinitudes

"Mas que seja infinito enquanto dure."
- vinícius de moraes -


"Foi infinito 
enquanto durou."
- marcos daniel -







quarta-feira, 3 de julho de 2013

Negligência


"Independente de como foi o seu ontem
ou se como será o seu amanhã,
hoje é sempre hoje."
- marcos daniel -


por Amanda Lemes

É comum vermos pessoas paradas no passado. Gente que já fez algo grande em um momento e depois nunca mais realizou algo bacana, então fica presa lá atrás. Ou ainda, pessoas que param em traumas, em desamores, em baques que também deveriam ter sido superados. E isso, estar preso ao que já passou, é uma prisão e uma inversão de valores.

Contudo, há um outro tipo de atitude, semelhante a está, fantasiada de algo bom. Mas que não é. Há pessoas paradas no futuro. Planejam tanto, acumulam, guardam, economizam em recursos objetivos e subjetivos, para usá-los no futuro. É claro que uma dose disso é algo bom... um pouco de planejamento, de economia é importante. Mas há quem guarde tudo para amanhã. 

Estes se esquecem que nem o que foi, nem o que será, existe mesmo. E uma vez que negligenciamos o presente, não faz sentido cuidar do futuro. A vida, na verdade, é somente o exato instante que se tem agora. É o amor que você sente e demonstra agora, é o cuidado que você oferece aos seus agora, é a compaixão com o próximo que você tem hoje. 

Vejo gente tentando ter um futuro lindo, com um presente precário, negligente. Vejo gente deixando o amor pra amanhã e colocando no lugar tanta coisa menor. É pena... mal sabem que a vida é tão rara, tão cara e acontece ou desaparece em um único instante!

Publicado originalmente no


segunda-feira, 1 de julho de 2013

Cadê!?

Porque metade de mim é saudade,
e a outra metade, cadê !?
- marcos daniel -


domingo, 30 de junho de 2013

Na ordem.

Sentir primeiro, pensar depois
Perdoar primeiro, julgar depois

Amar primeiro, educar depois
Esquecer primeiro, aprender depois

Libertar primeiro, ensinar depois
Alimentar primeiro, cantar depois

Possuir primeiro, contemplar depois
Agir primeiro, julgar depois

Navegar primeiro, aportar depois
Viver primeiro, morrer depois.
- mário quintana -

quinta-feira, 20 de junho de 2013

O ciúme


Dorme o sol à flor do Chico, meio-dia
Tudo esbarra embriagado de seu lume 
Dorme ponte, Pernambuco, Rio, Bahia 
Só vigia um ponto negro: o meu ciúme 
O ciúme lançou sua flecha preta 
E se viu ferido justo na garganta 
Quem nem alegre nem triste nem poeta 
Entre Petrolina e Juazeiro canta 
Velho Chico vens de Minas 
De onde o oculto do mistério se escondeu 
Sei que o levas todo em ti, não me ensinas 
E eu sou só, eu só, eu só, eu 
Juazeiro, nem te lembras dessa tarde 
Petrolina, nem chegaste a perceber 
Mas, na voz que canta tudo ainda arde 
Tudo é perda, tudo quer buscar, cadê 
Tanta gente canta, tanta gente cala 
Tantas almas esticadas no curtume 
Sobre toda estrada, sobre toda sala 
Paira, monstruosa, a sombra do ciúme.
- ney matogrosso -

segunda-feira, 17 de junho de 2013

Os Indiferentes

por Antonio Gramsci

Odeio os indiferentes. Como Friederich Hebbel acredito que "viver significa tomar partido". Não podem existir os apenas homens, estranhos à cidade. Quem verdadeiramente vive não pode deixar de ser cidadão, e partidário. Indiferença é abulia, parasitismo, covardia, não é vida. Por isso odeio os indiferentes.

A indiferença é o peso morto da história. É a bala de chumbo para o inovador, é a matéria inerte em que se afogam frequentemente os entusiasmos mais esplendorosos, é o fosso que circunda a velha cidade e a defende melhor do que as mais sólidas muralhas, melhor do que o peito dos seus guerreiros, porque engole nos seus sorvedouros de lama os assaltantes, os dizima e desencoraja e às vezes, os leva a desistir de gesta heroica.

A indiferença atua poderosamente na história. Atua passivamente, mas atua. É a fatalidade; e aquilo com que não se pode contar; é aquilo que confunde os programas, que destrói os planos mesmo os mais bem construídos; é a matéria bruta que se revolta contra a inteligência e a sufoca. O que acontece, o mal que se abate sobre todos, o possível bem que um ato heroico (de valor universal) pode gerar, não se fica a dever tanto à iniciativa dos poucos que atuam quanto à indiferença, ao absentismo dos outros que são muitos. O que acontece, não acontece tanto porque alguns querem que aconteça quanto porque a massa dos homens abdica da sua vontade, deixa fazer, deixa enrolar os nós que, depois, só a espada pode desfazer, deixa promulgar leis que depois só a revolta fará anular, deixa subir ao poder homens que, depois, só uma sublevação poderá derrubar.

A fatalidade, que parece dominar a história, não é mais do que a aparência ilusória desta indiferença, deste absentismo. Há fatos que amadurecem na sombra, porque poucas mãos, sem qualquer controle a vigiá-las, tecem a teia da vida coletiva, e a massa não sabe, porque não se preocupa com isso. Os destinos de uma época são manipulados de acordo com visões limitadas e com fins imediatos, de acordo com ambições e paixões pessoais de pequenos grupos ativos, e a massa dos homens não se preocupa com isso.

Mas os fatos que amadureceram vêm à superfície; o tecido feito na sombra chega ao seu fim, e então parece ser a fatalidade a arrastar tudo e todos, parece que a história não é mais do que um gigantesco fenômeno natural, uma erupção, um terremoto, de que são todos vítimas, o que quis e o que não quis, quem sabia e quem não sabia, quem se mostrou ativo e quem foi indiferente. Estes então se zangam, queriam eximir-se às consequências, quereriam que se visse que não deram o seu aval, que não são responsáveis.

Alguns choramingam piedosamente, outros blasfemam obscenamente, mas nenhum ou poucos põem esta questão: se eu tivesse também cumprido o meu dever, se tivesse procurado fazer valer a minha vontade, o meu parecer, teria sucedido o que sucedeu? Mas nenhum ou poucos atribuem à sua indiferença, ao seu cepticismo, ao fato de não ter dado o seu braço e a sua atividade àqueles grupos de cidadãos que, precisamente para evitarem esse mal combatiam (com o propósito) de procurar o tal bem (que) pretendiam.

A maior parte deles, porém, perante fatos consumados prefere falar de insucessos ideais, de programas definitivamente desmoronados e de outras brincadeiras semelhantes. Recomeçam assim a falta de qualquer responsabilidade. E não por não verem claramente as coisas, e, por vezes, não serem capazes de perspectivar excelentes soluções para os problemas mais urgentes, ou para aqueles que, embora requerendo uma ampla preparação e tempo, são todavia igualmente urgentes. Mas essas soluções são belissimamente infecundas; mas esse contributo para a vida coletiva não é animado por qualquer luz moral; é produto da curiosidade intelectual, não do pungente sentido de uma responsabilidade histórica que quer que todos sejam ativos na vida, que não admite agnosticismos e indiferenças de nenhum gênero.

Odeio os indiferentes também, porque me provocam tédio as suas lamúrias de eternos inocentes. Peço contas a todos eles pela maneira como cumpriram a tarefa que a vida lhes impôs e impõe quotidianamente, do que fizeram e sobretudo do que não fizeram. E sinto que posso ser inexorável, que não devo desperdiçar a minha compaixão, que não posso repartir com eles as minhas lágrimas. Sou militante, estou vivo, sinto nas consciências viris dos que estão comigo pulsar a atividade da cidade futura que estamos a construir. Nessa cidade, a cadeia social não pesará sobre um número reduzido, qualquer coisa que aconteça nela não será devido ao acaso, à fatalidade, mas sim à inteligência dos cidadãos. Ninguém estará à janela a olhar enquanto um pequeno grupo se sacrifica, se imola no sacrifício. E não haverá quem esteja à janela emboscado, e que pretenda usufruir o pouco bem que a atividade de um pequeno grupo tenta realizar e afogue a sua desilusão vituperando o sacrificado, porque não conseguiu o seu intento.

Vivo, sou militante. Por isso odeio quem não toma partido, odeio os indiferentes.

quinta-feira, 13 de junho de 2013

Voltas


 Passa o tempo e a vida passa
E eu, de alma ingênua, acredito
No sonho doce infinito
Plenitude, enlevo e graça
Que sem tortura ou revolta
Estou cantando ao luar
Vamos dar a meia-volta
Volta e meia vamos dar


Depois a estrada poeirenta

Os pés sangrando em pedrouços
E apaziguando alvoroços
A alma intranquila e sedenta
Murchessem todas as flores
A correnteza das horas
As trevas sobre as auroras
Os derradeiros amores


Recordo o passado inteiro

E as voltas que o mundo dá
Meu limão, meu limoeiro
Meu pé de jacarandá
E aquele ao léu do destino
Que inspirou tanto louvor
Cajueiro pequenino
Carregadinho de flor


Passa o tempo e eu fico mudo

Ontem ainda a ciranda
Vida à toa, a trova branda
Agora envolvendo tudo
O vale nativo, os combros
Várzea, montanha, leveza
Essa poeira de escombros
De que se nutre a tristeza


Velho, recordo o menino
Que resta de mim, sei lá
Cajueiro pequenino
Meu pé de jacarandá
- maria bethânia -

quarta-feira, 12 de junho de 2013

"Todos Negros"- A história de uma foto

Esta foto de 1983, tirada pelo fotógrafo Luiz Mourier, nos confronta com uma realidade ainda disfarçada pela crença da "democracia racial", que se traduz em um processo de criminalização do negro e da pobreza.



Foi em uma blitz da PM na estrada Grajaú-Jacarepaguá, no Rio de Janeiro. Quando o repórter e sua equipe chegaram se depararam com esta imagem inacreditável: seis moradores negros de uma comunidade que foram presos e amarrados pelo pescoço como nos tempos de escravidão. 

Trecho do depoimento de Luiz Mourier, gravado em 11/05/2007, a respeito de sua foto intitulada por ele “Todos Negros”:

Quando eu fiz esta foto, eu estava passando pela Grajaú-Jacarepaguá, e, passando pela estrada, percebi que havia uma blitz. Parei e fotografei a blitz. E me deparei com esta cena, os negros todos amarrados pelo pescoço. E até dei o título da foto de “Todos Negros”. E logo em seguida eu fui embora, e mais abaixo tinha uma manifestação dos moradores, eu continuei fazendo a seqüência e tal, e fui embora.

E essa me trouxe meu primeiro prêmio Esso na minha carreira. A sensação que eu tive foi de humilhação. Senti uma cena humilhante. As pessoas humilhadas, pessoas com carteira de trabalho na mão, dava para perceber que não eram bandidos, porque bandidos não usam um tipo de veste assim. É claro que eles se vestem bem melhor que isso. Eram pessoas simples, humildes, todos negros. Senti que era um ato de humilhação. Estavam sendo humilhados ali, carregados pelo pescoço como escravos.

- Do material que você fez nesse dia, você tinha certeza de que esta foto tinha destaque em relação às outras?

Não, não tinha certeza, não. Porque a gente… Eu, pelo menos, sempre… Você faz uma foto na hora, aí você só vai ter uma idéia depois que ela foi revelada. Quando eu estava revelando, sim. Aí, que eu vi a foto revelada, eu falei: “pô, essa vai dar o que falar!…” Que isso não é coisa que possa acontecer com o ser humano nos dias de hoje. Ou na época, na década de 80. Mas, até hoje a gente vê humilhação por aí…

Percebi que houve uma reação grande de todos que viram a foto. Até hoje, até hoje…

Quem ainda não viu e vê a foto… Já foi usada por várias faculdades, já foi tema… Inclusive foi, até, em 1988, quando a escravidão… Fez cem anos da Lei Áurea, ela foi bem revista e colocada para todos verem que cem anos depois ainda havia esse tipo de cena. (…)

Eu percebi que tinha uma blitz, mas eu parei porque tinha um camburão parado na pista. Eu fui lá dentro do mato fazer esta foto aqui. Então, eles estavam praticamente escondidos. Quer dizer, eu cacei!… Não estavam expostos assim, na rua. Você pode ver que tem mato lá no fundo, estavam lá no meio do mato, um caminhozinho no meio do mato. Então, quer dizer, era mais escondido, de uma forma… Eles faziam as mutretas, faziam tudo que tinham que fazer, mas, mais escondidos, para que a imprensa não visse mesmo. Agora, eles não estão nem aí… Agora, é tiro pra cá, é tiro pra lá, caiu ali, se tiver fotografa, se não tiver…

- Nessa foto aí, os PMs tiveram alguma reação de não deixarem você fotografar?

Ah, a reação foi imediata!… O tenente falou: “recolhe, recolhe, recolhe!”. Quando ele percebeu que eu estava fotografando, ele mandou recolher. Só que quando ele mandou recolher, ele não percebeu que eu… O guarda não percebeu que eu estava fazendo uma foto dele. Eu estava com um grande angular, ele achou que eu estivesse fazendo só os presos. E, no entanto, ele estava enquadrado na foto. (…)

Tem a importância que tem hoje porque mostra uma autoridade, ali, que devia usar algemas, no mínimo, e usou uma corda, e amarrada no pescoço. Não foi nem nas mãos, foi no pescoço. Quer dizer, um ato escravo mesmo! (…)

Sim, agora é. Para mim, ela é uma foto histórica. E vai estar sempre no primeiro lugar, pra mim, porque é uma foto que marcou muito esse meu tempo de trabalho.

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Publicado originalmente no Viomundo.

Luiz Morier diz que foi no Jornal Tribuna da Imprensa 
que tudo começou. Aos seis anos, acompanhava o pai, 
Max Morier, repórter esportivo já falecido, e meio que um 
fundador da Tribuna. Morier começou a carreira de repórter
fotográfico no extinto jornal Última Hora, em 1977. Também 
teve passagens pelo Globo e trabalhou como freelancer no 
Estadão. No Jornal do Brasil trabalhou mais de 25 anos. 
Nos últimos anos tem frilado para várias empresas.

terça-feira, 11 de junho de 2013

AOS QUE AINDA SABEM SONHAR

por Andre Borges Lopes

"Jovens vão às ruas e nos mostram 
que desaprendemos a sonhar."


O fundamental não é lutar pelo direito de fumar maconha em paz na sala da sua casa. O fundamental não é o direito de andar vestida como uma vadia sem ser agredida por machos boçais que acham que têm esse direito porque você está "disponível". O fundamental não é garantir a opção de um aborto assistido para as mulheres que foram vítimas de estupro ou que correm risco de vida. O fundamental não é impedir que a internação compulsória de usuários de drogas se transforme em ferramenta de uma política de higienismo social e eliminação estética do que enfeia a cidade. O fundamental não é lutar contra a venda da pena de morte e da redução da maioridade penal como soluções finais para a violência. O fundamental não é esculachar os torturadores impunes da ditadura. O fundamental não é garantir aos indígenas remanescentes o direito à demarcação das suas reservas de terras. O fundamental não é o aumento de 20 centavos num transporte público que fica a cada dia mais lotado e precário.



O fundamental é que estamos vivendo uma brutal ofensiva do pensamento conservador, que coloca em risco muitas décadas de conquistas civilizatórias da sociedade brasileira.

O fundamental é que sob o manto protetor do "crescimento com redução das desigualdades" fermenta um modelo social que reproduz – agora em escala socialmente ampliada – o que há de pior na sociedade de consumo, individualista ao extremo, competitiva, ostentatória e sem nenhum espaço para a solidariedade.

O fundamental é que a modesta redução da nossa brutal desigualdade social ainda não veio acompanhada por uma esperada redução da violência e da criminalidade, muito pelo contrário. E não há projeto nacional de combate à violência que fuja do discurso meramente repressivo ou da elegia à truculência policial.

O fundamental é que a democratização do acesso ao ensino básico e à universidade por vezes deixam de ser um instrumento de iluminação e arejamento dos indivíduos e da própria sociedade, e são reduzidos a uma promessa de escada para a ascensão social via títulos e diplomas, ao som de sertanejo universitário.

O fundamental é que os políticos e grandes partidos antigamente ditos "libertários" e "de esquerda" hoje abriram mão de disputar ideologicamente os corações e mentes dos jovens e dos novos "incluídos sociais" e se contentam em garantir a fidelidade dos seus votos nas urnas, a cada dois anos.

O fundamental é que os políticos e grandes partidos antigamente ditos "sociais-democratas" já não tem nada a oferecer à juventude além de um neo-udenismo moralista que flerta desavergonhadamente com o autoritarismo e o fascismo mais desbragados.
O fundamental é que a promessa da militância verde e ecológica vai aos poucos rendendo-se aos balcões de negócio da velha política partidária ou ao marketing politicamente correto das grandes corporações.

O fundamental é que os sindicatos, movimentos populares e organizações estudantis estão entregues a um processo de burocratização, aparelhamento e defesa de interesses paroquiais que os torna refratários a uma participação dinâmica, entusiasmada e libertária.

O fundamental é que temos em São Paulo um governo estadual que é francamente conservador e repressivo, ao lado de um governo federal que é supostamente "progressista de coalizão". Mas entre a causa da liberação da maconha e defesa da internação compulsória, ambos escolhem a internação. Entre as prostitutas e a hipocrisia, ambos ficam com a hipocrisia. Entre os índios e os agronegócio, ambos aliam-se aos ruralistas. Entre a velha imprensa embolorada e a efervescência libertária da Internet, ambos namoram com a velha mídia. Entre o estado laico e os votos da bancada evangélica, ambos contemporizam com o Malafaia. Entre Jean Willys e Feliciano, ambos ficam em cima do muro, calculando quem pode lhes render mais votos.

O fundamental é que o temor covarde em expor à luz os crimes e julgar os aqueles agentes de estado que torturaram e mataram durante da ditadura acabou conferindo legitimidade a auto-anistia imposta pelos militares, muitos dos quais hoje se orgulham publicamente dos seus crimes bárbaros – o que nos leva a crer que voltarão a cometê-los se lhes for dada nova oportunidade.

O fundamental é que vivemos numa sociedade que (para usar dois termos anacrônicos) vai ficando cada vez mais bunda-mole e careta. Assustadoramente careta na política, nos costumes e nas liberdades individuais se comparada com os sonhos libertários dos anos 1960, ou mesmo com as esperanças democráticas dos anos 1980. Vivemos uma grande ofensiva do coxismo: conservador nas ideias, conformado no dia-a-dia, revoltadinho no trânsito engarrafado e no teclado do Facebook.

O fundamental é que nenhum grupo político no poder ou fora dele tem hoje qualquer nível mínimo de interlocução com uma parte enorme da molecada – seja nas universidades ou nas periferias – que não se conforma com a falta de perspectivas minimamente interessantes dentro dessa sociedade cada vez mais bundona, careta e medíocre.

 Os mesmos indignados que se esgoelam no mundo virtual clamando que a juventude e os estudantes "se levantem" contra o governo e a inação da sociedade, são os primeiros a pedir que a tropa de choque baixe a borracha nos "vagabundos" quando eles fecham a 23 de Maio e atrapalham o deslocamento dos seus SUVs rumo à happy-hour nos Jardins.

Acuados, os políticos "de esquerda" se horrorizam com as cenas de sacos de lixo pegando fogo no meio da rua e se apressam a condenar na TV os atos de "vandalismo", pois morrem de medo que essas fogueiras causem pavor em uma classe média cada vez mais conservadora e isso possa lhes custar preciosos votos na próxima eleição.

Enquanto isso a molecada, no seu saudável inconformismo, vai para as ruas defender – FUNDAMENTALMENTE – o seu direito de sonhar com um mundo diferente. Um mundo onde o ensino, os trens e os ônibus sejam de qualidade e gratuitos para quem deles precisa. Onde os cidadãos tenham autonomia de decidir sobre o que devem e o que não devem fumar ou beber. Onde os índios possam nos mostrar que existem outros modos de vida possíveis nesse planeta, fora da lógica do agribusiness e das safras recordes. Onde crenças e religião sejam assunto de foro íntimo, e não políticas de Estado. Onde cada um possa decidir livremente com quem prefere trepar, casar e compartilhar (ou não) a criação dos filhos. Onde o conceito de Democracia não se resuma à obrigação de digitar meia dúzia de números nas urnas eletrônicas a cada dois anos.

Sempre vai haver quem prefira como modelo de estudante exemplar aquele sujeito valoroso que trabalha na firma das 8 da manhã às 6 da tarde, pega sem reclamar o metrô lotado, encara mais quatro horas de aulas meia-boca numa sala cheia de alunos sonolentos em busca de um canudo de papel, volta para casa dos pais tarde da noite para jantar, dormir e sonhar com um cargo de gerente e um apartamento com varanda gourmet.

Não é meu caso. Não tenho nem sombra de dúvida de que prefiro esses inconformados que atrapalham o trânsito e jogam pedra na polícia. Ainda que eles nos pareçam filhinhos-de-papai, ingênuos em seus sonhos, utópicos em suas propostas, politicamente manobráveis em suas reivindicações, irresponsavelmente seduzidos pelos provocadores de sempre.

Desde a Antiguidade, esses jovens ingênuos e irresponsáveis são o sal da terra, a luz do sol que impede que a humanidade apodreça no bolor da mediocridade, na inércia do conformismo, na falta de sentido do consumismo ostentatório, nas milenares pilantragens travestidas de iluminação espiritual.

Esses moleques que tomam as ruas e dão a cara para bater incomodam porque quebram vidros, depredam ônibus e paralisam o trânsito. Mas incomodam muito mais porque nos obrigam a olhar para dentro das nossas próprias vidas e, nessa hora, descobrimos que desaprendemos a sonhar.
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Publicado originalmente no


domingo, 9 de junho de 2013

Paciência

por Lenine

Mesmo quando tudo pede um pouco mais de calma
Até quando o corpo pede um pouco mais de alma
A vida não para...

Enquanto o tempo acelera e pede pressa
Eu me recuso, faço hora, vou na valsa
A vida é tão rara...

Enquanto todo mundo espera a cura do mal
E a loucura finge que isso tudo é normal
Eu finjo ter paciência...

O mundo vai girando cada vez mais veloz
A gente espera do mundo e o mundo espera de nós
Um pouco mais de paciência...

Será que é tempo que lhe falta pra perceber ?
Será que temos esse tempo pra perder?
E quem quer saber ? 
A vida é tão rara
Tão rara...

Mesmo quando tudo pede um pouco mais de calma
Até quando o corpo pede um pouco mais de alma
Eu sei, a vida não para
A vida não para não!




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sábado, 8 de junho de 2013

Qual é a diferença !?

por Marcos Daniel

Ontem assisti "OUTRA TERRA" (uma merda, muita gente indo embora do cinema antes da metade do filme e tals... mas brasileiro q sou fiquei até o fim). Do que se aproveita destaco os quesitos técnicos que sempre são muito bem executados nessas produções cinematográficas estadunidenses. Me chamou a atenção a visão que eles passam do planeta terra depois de ficar zilhões de anos sem a presença da raça humana. Manadas gigantescas de animais selvagens. O céu tomado por aves, o mar repleto de baleias, um verde absoluto. Tudo perfeito e lindo..... um sonho.

Daí eu acabei de ler, perplexo, um artigo INACREDITÁVEL escrito por uma militante de direita, do tipo que faria o Reinaldo Rola-Bosta Azevedo dar xiliques de inveja. A infeliz defende abertamente a xenofobia, acusando os indios de serem inferiores, vagabundos e pinguços.



Em 2013 o filme "A LISTA DE SCHINDLER" completou 20 anos. Assisti alguns documentários, bastidores, cenas inéditas e me lancei na indigesta tarefa de assistir ao filme novamente, 20 anos depois. Pra quem não assistiu e tem estomago forte eu recomendo como pesquisa histórica e tal. O Spilberg é descendente de judeus e na época disse que produziu e dirigiu o filme para deixar um registro daquela sandice toda, na esperança de que aquilo não se repetisse.

Uma das cenas que me chamou a atenção nessa nova leitura (pensa só eu, 20 anos mais velho... o que vi foi outro filme) foi uma em que o exercito nazista vai invadindo a cidade e expulsando os judeus de suas propriedades, mal dando tempo de recolherem seus pertences, e cedendo a propriedade dias depois para comandantes do exercito e patrocinadores do regime, com a mobília, a prataria, enxovais e tudo o mais. A cena me causou uma revolta enorme. Me coloquei na pele daquela gente que morava naqueles imóveis há gerações, sendo expulsa de suas casas simplesmente porque algum grupo muito filho da puta acreditava que eles eram inferiores, vagabundos ou pinguços.

Não é muito comum ver pessoas defendendo o holocausto judeu (teve aquele bispo aquela vez que disse que nada daquilo aconteceu mas esses católicos são estranhos mesmo), mas vejo bastante gente defendendo o holocausto indígena ocorrido no brasil e em outras partes do mundo. 

Pois se é pra defender um holocausto eu defendo esse da raça humana toda. No filme OUTRA TERRA o planeta ficou tão legal sem esse gente branca toda bem vestida dia de domingo pra ir na igreja orar pra um deus que só ama a eles e a mais ninguém.

quinta-feira, 6 de junho de 2013

Eclipse Oculto


por Caetano Veloso

Nosso amor não deu certo
Gargalhadas e lágrimas
De perto fomos quase nada
Tipo de amor que não pode 
dar certo na luz da manhã
E desperdiçamos os blues do Djavan...

Demasiadas palavras, fraco impulso de vida
Travada a mente na ideologia
E o corpo não agia como se o coração
Tivesse antes que optar
Entre o inseto e o inseticida...

Não me queixo, eu não soube te amar
Mas não deixo de querer conquistar
Uma coisa qualquer em você
O que será?

Como nunca se mostra o outro lado da lua
Eu desejo viajar do outro lado da sua
Meu coração - galinha de leão -
Não quer mais amarrar frustação
O eclipse oculto na luz do verão...

Mas bem que nós fomos muito felizes
Só durante o prelúdio
Gargalhadas e lágrimas até irmos pro estúdio
Mas na hora da cama nada pintou direito
É minha cara falar: Não sou proveito, sou pura fama....

(...)

Nada tem que dar certo, nosso amor é bonito
Só não disse ao que veio, atrasado e aflito
E paramos no meio sem saber os desejos
Aonde é que iam dar
E aquele projeto ainda estará no ar...

Não quero que você fique fera comigo
Quero ser seu amor, quero ser seu amigo
Quero que tudo saia como som de Tim Maia
Sem grilos de mim, sem desespero
Sem tédio, sem fim...

quarta-feira, 5 de junho de 2013

Recordação

por Antonio Prata

"Hoje a gente ia fazer 25 anos de casado", ele disse, me olhando pelo retrovisor. Fiquei sem reação: tinha pegado o táxi na Nove de Julho, o trânsito estava ruim, levamos meia hora para percorrer a Faria Lima e chegar à rua dos Pinheiros, tudo no mais asséptico silêncio, aí, então, ele me encara pelo espelhinho e, como se fosse a continuação de uma longa conversa, solta essa: "Hoje a gente ia fazer 25 anos de casado".

Meu espanto, contudo, não durou muito, pois ele logo emendou: "Nunca vou esquecer: 1º de junho de 1988. A gente se conheceu num barzinho, lá em Santos, e dali pra frente nunca ficou um dia sem se falar! Até que cinco anos atrás... Fazer o que, né? Se Deus quis assim...".



'Não faz sentido, pra que que a pessoa 
quer gravar as coisas que não são 
da vida dela e as coisas que são, não?'










Houve um breve silêncio, enquanto ultrapassávamos um caminhão de lixo e consegui encaixar um "Sinto muito". "Obrigado. No começo foi complicado, agora tô me acostumando. Mas sabe que que é mais difícil? Não ter foto dela." "Cê não tem nenhuma?" "Não, tenho foto, sim, eu até fiz um álbum, mas não tem foto dela fazendo as coisas dela, entendeu? Que nem: tem ela no casamento da nossa mais velha, toda arrumada. Mas ela não era daquele jeito, com penteado, com vestido. Sabe o jeito que eu mais lembro dela? De avental. Só que toda vez que tinha almoço lá em casa, festa e alguém aparecia com uma câmera na cozinha, ela tirava correndo o avental, ia arrumar o cabelo, até ficar de um jeito que não era ela. Tenho pensado muito nisso aí, das fotos, falo com os passageiros e tal e descobri que é assim, é do ser humano, mesmo. A pessoa, olha só, a pessoa trabalha todo dia numa firma, vamos dizer, todo dia ela vai lá e nunca tira uma foto da portaria, do bebedor, do banheiro, desses lugares que ela fica o tempo inteiro. Aí, num fim de semana ela vai pra uma praia qualquer, leva a câmera, o celular e tchuf, tchuf, tchuf. Não faz sentido, pra que que a pessoa quer gravar as coisas que não são da vida dela e as coisas que são, não? Tá acompanhando? Não tenho uma foto da minha esposa no sofá, assistindo novela, mas tem uma dela no jet ski do meu cunhado, lá na Guarapiranga. Entro aqui na Joaquim?" "Isso."

"Ano passado me deu uma agonia, uma saudade, peguei o álbum, só tinha aqueles retratos de casório, de viagem, do jet ski, sabe o que eu fiz? Fui pra Santos. Sei lá, quis voltar naquele bar." "E aí?!" "Aí que o bar tinha fechado em 94, mas o proprietário, um senhor de idade, ainda morava no imóvel. Eu expliquei a minha história, ele falou: Entra'. Foi lá num armário, trouxe uma caixa de sapatos e disse: É tudo foto do bar, pode escolher uma, leva de recordação'."

Paramos num farol. Ele tirou a carteira do bolso, pegou a foto e me deu: umas 50 pessoas pelas mesas, mais umas tantas no balcão. "Olha a data aí no cantinho, embaixo." "1º de junho de 1988?" "Pois é. Quando eu peguei essa foto e vi a data, nem acreditei, corri o olho pelas mesas, vendo se achava nós aí no meio, mas não. Todo dia eu olho essa foto e fico danado, pensando: será que a gente ainda vai chegar ou será que a gente já foi embora? Vou morrer com essa dúvida. De qualquer forma, taí o testemunho: foi nesse lugar, nesse dia, tá fazendo 25 anos, hoje. Ali do lado da banca, tá bom pra você?"

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Publicado originalmente 

sábado, 1 de junho de 2013

In the nineteen-nineties

"I never dreamt that I would get to be
The creature that I always meant to be
But I thought in spite of dreams
You'd be sitting somewhere here with me."
- pet shop boys -

"Nunca sonhei que eu chegaria a ser
a criatura que sempre pretendi ser,
mas eu pensava que, independente dos sonhos,
você estaria sentada em algum lugar aqui comigo."
- garotos da loja de animais -
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