sexta-feira, 25 de maio de 2012

Eu não acho a pessoa.

por Eliane Brum

"(...) Temos duas vidas: uma visível, 
assumida, às claras; e outra secreta. 
Uma “evidente”, “cheia de verdades convencionais 
e de mentiras convencionais”, 
exatamente igual a de todos; 
e outra que transcorre nos vãos."

(...) Fui na hora tomada por uma golfada de felicidade. Ela não estava aflita porque perdera o informe do imposto de renda enviado pelo banco, ou seus brincos de pérola, ou um vinil dos Secos & Molhados. Não. B perdera a pessoa.

“Hum”, fiz eu, em boa performance psicanalítica. B explicou-me então que não sabia quando perdera a pessoa, mas podia localizar o momento exato em que descobrira que a tinha perdido. Ela tomava um chocolate quente e tentava ler as notícias do jornal. (...) Neste ponto da leitura, B havia corrido ao Twitter para entrar na campanha “Veta Dilma. Veta Tudo”. Engatou alguns diálogos de 140 caracteres com desconhecidos conhecidos, deu alguns cliques e, quando voltou a tomar um gole de chocolate, percebeu que o leite esfriara. Foi nesse instante, me garantiu ela, que descobriu que tinha perdido a pessoa.

B tinha acabado de ler um conto e um romance russos. O famoso “A dama do cachorrinho”, de Tchekhov, e o “Oblómov”, de Ivan Gontcharov. A combinação dos dois fez com que uma lâmpada se acendesse dentro de B – e, de súbito, ela descobriu o que não estava mais lá. A pessoa.

Em “A Dama do Cachorrinho”, Tchekhov nos mostra, através de uma história de amor, que temos duas vidas: uma visível, assumida, às claras; e outra secreta. Uma “evidente”, “cheia de verdades convencionais e de mentiras convencionais”, exatamente igual a de todos; e outra que transcorre nos vãos.

No caso do personagem de Tchekhov, tudo o que era para ele indispensável, relevante e sincero, tudo o que não era engano, se passava no escuro de si. E tudo o que era “sua mentira, sua casca, na qual ele se escondia para encobrir a verdade”, como seu trabalho no banco, as discussões no clube, os compromissos sociais com a esposa, tudo isso era visto e compreendido como se fosse ele – mas era apenas aquilo que o ocultava.

Neste ponto, B começou a chorar. “Não vale a pena ter uma vida em que o mais importante de mim precise respirar nas sombras”, dizia. “Meus eus devem coincidir.” Havia uma nota tão rascante em seu choro, como uma porta enferrujada por anos que começa a se abrir à força.“Você é tudo isso”, eu disse, numa tentativa de consolo. “Inclusive essa máscara social que você usa para que o mundo não te mastigue.”

B apenas chorou mais. “Você não está entendendo. Eu não estou recusando o contraditório de mim. Eu estou recusando essa máscara que me torna alguém plano e palatável. Vale a pena viver escondendo as verdades que mais me importam?” B agora tinha raiva, e apontava essa raiva para mim. Ela continuou: “Se o mundo quiser me mastigar, que mastigue. Mastigará carne, e não um cupcake.” Desta vez, eu apenas disse: “Estou indo praí”.

Encontrei B estatelada no sofá, olhando para o teto. O rosto inchado de choro, mas já com o peito subindo e descendocom regularidade. Eu não havia lido o “Oblómov”, porque nunca encontrei uma tradução para o português que me animasse. Mas sabia que era uma sátira sobre a imobilidade da aristocracia russa em meados do século XIX, diante dos acontecimentos que precederam e anunciaram a revolução de 1917.

Não para B.

Durante mais ou menos 150 páginas de romance, Oblómov não sai do seu sofá. Incapaz de agir e de escolher, o personagem se imobiliza. Como B, no momento em que me conta sobre ele. Oblómov recebe visitas de pessoas que representam diferentes papéis no espectro da sociedade da época. E, quando essas pessoas lhe contam do mundo, lhe contam do mundo por suas ações e pelas ações de outros, Oblómov só faz pensar: “Cadê a pessoa?”.

Pensei que B estava adivinhando sentidos no romance que só faziam sentido em seu estado delirante. Mas, dois dias depois do enigmático telefonema de B, eu me distraía com um livro bastante delicioso chamado “Os possessos – aventuras com os livros russos e seus leitores” (Leya), quando descobri que a autora, Elif Batuman, tinha lido “Oblómov” com um olhar muito semelhante ao de B.
Em seu livro, Batuman, uma americana de origem turca que hoje vive em Istambul, entrelaça os escritores russos e seus protagonistas com os personagens contemporâneos do mundo acadêmico que inventam sentidos para suas vidas a partir da interpretação de suas obras. E o faz com humor, sensibilidade e sarcasmo. Sorri ao pensar que B e eu também cometíamos um pequeno enredo desatinado, às voltas com os russos que nos uniram por acaso depois de tanto tempo.

Batuman afirma, em um dos ensaios do livro: “Vejo agora que o problema da pessoa era a chave da preguiça de Oblómov. Ele é tão avesso a se reduzir a soma das ações que decide sistematicamente não agir– e desse modo revelar mais inteiramente sua verdadeira pessoa, e deleitar-se nela, não adulterado”. Publicado em 1859, “Oblómov” quase coincide, no tempo, com a obra-maravilha do americanoHerman Melville: “Bartleby, o escriturário”, livro que faz parte dos meus amores mais profundos. Como Oblómov, mas diferente dele, Bartleby a tudo apenas dizia: “Prefiro não fazer”.

Assim é descrita uma das visitas recebidas por Oblómov em seu já mítico sofá. “Um antigo colega do serviço público conta a Oblómov da sua recente promoção a chefe de seção, seus novos privilégios e responsabilidades. ‘Com o tempo ele será um figurão e conseguirá um alto posto’, Oblómov pondera. ‘Isso é o que a gente chama de uma carreira! Mas como requer pouco da pessoa: sua mente, seu desejo, suas emoções não são necessárias.’ Esticando os membros, Oblómov sente-se orgulhoso por não ter relatórios a preencher e pelo fato de ali no sofá ‘haver amplo espaço tanto para as suas emoções como para a sua imaginação’. ”

Um século e meio mais tarde, B, no sofá da sala de seu apartamento de classe média paulistana, encarna Oblómov à sua própria maneira: “Cadê a pessoa?”. Ou: “Perdi a pessoa!”. B conta-me que se sente exposta, toda virada pra fora, uma mulher em seu avesso. Nos últimos anos ela se tornara uma personagem das redes sociais. E , desde que nos reencontramos, tenta me convencer a entrar no Facebook. B gosta de viver em rede e está longe de ser uma solitária que achou um jeito de existir na internet. Apenas que ela pensara ter se feito presente ali mais do que em qualquer outra geografia. Mas, de repente, B não mais se reconhece no personagem que criou. “Virei uma prisioneira”, ela diz. “Do quê?”, pergunto eu, a essa altura já bastante perturbada. “Dessa persona pública que me tornei. Todo mundo me conhece, e eu me desconheço.”

B descobrira que era uma pessoa – sem pessoa. “Estou reduzida a ações, a verbos. Virei um noticiário, eu, que nunca acreditei em fatos. Mesmo quando analiso, quando infiro, quando relaciono... são ações. É um eco, só um eco. Não sei mais onde está a voz que o gerou.” Diante dela, eu tentava descobrir a pessoa em mim que poderia resgatar a pessoa de B. Aquilo que me levara a deixar a minha casa no meio de uma manhã de trabalho para ajudá-la a procurar não o passaporte ou o título de eleitor, mas a pessoa que havia se desgarrado dela. Encolhi-me na poltrona, antes de arriscar. “Ninguém te conhece. E você não conhece ninguém”, disse. E minha voz saiu mais aguda do que eu planejara. “São poucos os que podem nos conhecer, o resto é o bando que se alimenta e se protege mutuamente, ferindo quem for preciso para não ter sua posição ameaçada. Você quer ofertar seu corpo verdadeiro para que o canibalizem?”

Eu também estava confusa. “Há uma escuridão, e eu sou essa escuridão”,repetia B. “E lá, em algum ponto desse buraco negro, há uma pessoa que grita, mas ela está presa na nuvem. A conexão se perdeu, eu me perdi.” Percebi que B, minha amiga mais presente, no presente, a mais pública, a mais conectada sentia-se incorpórea. Sentia-se uma pessoa sem pessoa – e também sem corpo.
Quando juntas estudávamos a obra de Isaac Bábel, eu e B havíamos chorado ao tomarmos conhecimento da lista dos pertences encontrados no apartamento do escritor, em Moscou. Bábel fora preso pela polícia de Stálin. Seus manuscritos foram confiscados, seu nome apagado de enciclopédias, dicionários literários e roteiros de cinema, seus óculos quebrados, seu corpo torturado e, até ser executado por um pelotão de fuzilamento, tudo o que ele pedia era: “Deixem-me concluir minha obra”. Os manuscritos de Bábel desapareceram, e ele será sempre um homem inconcluso – como todos nós e, de certo modo, mais que todos. Mas o que fez eu e B nos comovermos para além da brutalidade do regime de Stálin, que executara também as letras de Bábel,foi descobrir no espólio do escritor“um pato de banho”.

Se a pessoa de Bábel estava em algum lugar, pensei, era naquele pato de borracha. Sem saber o que fazer, lançada na claridade pela lucidez excessiva de B, agarrei forte a sua mão. Agarrei para machucar, para que B sentisse as minhas unhas. Eu sabia que, se a “pessoa” de nós estava em algum lugar, era naquele toque que nos impedia de submergir no que o personagem de Tchekhov chamou de “verdades convencionais e mentiras convencionais”.

Não me parece que B seja a única a vagar por aí gritando: “Cadê a pessoa?”. Por isso pedi a ela autorização para contar da sua perda a vocês. B a deu na hora. Mas quando lhe perguntei se poderia colocar seu nome, ela negou com veemência: “Se você revelar meu nome, eu perderei a pessoa para sempre. A pessoa está fora do nome”.
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Eliane Brum escreve às segundas-feiras na Revista Época.

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