segunda-feira, 14 de maio de 2012

Hall 31


por Marcos Daniel

O Edifício Távora era um dos endereços mais tradicionais da cidade. Havia sido o mais luxuoso hotel de uma grande rede até 1970. Com a falência do grupo, toda a massa falida foi adquirida à preços módicos por um grupo de empresários gregos. Logo em seguida a família Távora adquiriu o imóvel, na intenção de transformá-lo em um prédio comercial. Depois de iniciada a reforma, decidiu-se que apenas os dois primeiros andares seriam comercias, ficando os treze restantes como apartamentos residenciais de alto padrão, com apenas dois apartamentos por andar. O térreo era todo ocupado pela agência de um tradicional banco de câmbio e ações. Com os anos os apartamentos foram sendo vendidos um a um, restando algumas poucas unidades, além da cobertura, em nome da família Távora.

Não tinha certeza se deveria entrar. Passara o último ano planejando e antevivendo aquele momento e agora a certeza lhe escapava entre os dedos. Ou talvez até tivesse certeza, mas o certo é que tinha medo das certezas. Certezas são sempre perigosas. Já se atirara inúmeras vezes na vida nos braços de certezas insofismáveis e dera com a cara no chão. Mas agora seria tolice retroceder. Viera de longe, no tempo e no espaço. Já que tinha que fazer aquilo, que fosse rápido e indolor.

Respirou fundo e entrou, sentindo a boca seca e um frio a lhe percorrer a espinha. Ficou alguns instantes admirando o mobiliário antigo, madeiras nobres, tapetes orientais e lustres europeus. A luz do sol de primavera atravessava os dois grandes vitrais que se opunham sobre a recepção, onde uma moça de uns vinte e poucos anos loura e mal maquiada esperava por algo que ela jamais saberia o que era. Será que se parece com ela?

Aproximou-se lentamente, dando tempo para que a moça mal maquiada baixasse a cabeça, na esperança de que ela desistisse de lhe importunar com o que quer que fosse. O crachá trazia o nome Lígia, escrito à mão num papel colado sobre o nome do antigo titular do crachá. - Que pobreza - pensou com desdém.

- Bom dia Lígia, estou à procura do Doutor Alessandro Távora e sua esposa.

Aprendera com o pai a tratar os serviçais sempre pelo nome, assim saberiam que você sabe o nome deles, o que provocaria, em tese, um atendimento melhor. Quase nunca dava certo e dessa vez não foi diferente.

- O casal esta em viagem - respondeu a moça sem sequer levantar a cabeça.

Não contava com isso. O misto de alívio e frustração diante do inesperado causou-lhe um ligeiro torpor, rapidamente controlado.

- Posso deixar um recado ?

Lígia estendeu-lhe um bloco de rascunho, ainda de cabeça baixa.

- Tem uma caneta.

Nesse momento Lígia lhe encarou pela primeira vez, desviando o olhar para a grande bolsa que Vera carregava e retornando o olhar para seu rosto como a perguntar – Pra que a perua vadia tem uma bolsa tão grande se não carrega uma porra de uma caneta.

Vera sorriu seu sorriso falso numero 7, enquanto Lígia lhe estendia uma caneta com o emblema do banco de câmbio e ações que funcionava no térreo, propriedade da família de Vera. Mas Lígia jamais saberia disso.

Retirou-se elegantemente até um dos grandes sofás que ficavam harmonicamente espalhados ao longo do saguão do edifício. Pensava no que escrever. Não avisou que viria, certa de que o casal seria contrário à sua visita. Na única ocasião em que ela e o finado marido ameaçaram aparecer, revelando o motivo da visita, foram advertidos severamente para desistirem, inclusive sob ameaças. Mas isso foi há mais de 15 anos.


Alessandro e Sara.
Desculpe ter vindo sem avisar. Imagino que vocês saibam que Marcio morreu ano passado. Imagino também que saibam a natureza da minha visita. Sei que esse assunto é bastante indigesto e delicado pra vocês. Mas acreditem, pra mim também não é fácil. Foi muito triste vê-lo morrer sem que este caso estivesse resolvido. Era muito importante pra ele que as coisas se acertassem e dei minha palavra de que resolveria isso o mais breve possível. Espero que possamos fazer isso amigavelmente. Estou hospedada no Hilton e não pretendo partir antes de resolvermos tudo. Falo em nome de nossa antiga amizade, e dos bons laços que existem entre nossas famílias.
Att.
Vera Weaтhezbble.


Dobrou o papel e guardou-o na bolsa. Atravessou o saguão até a cafeteria que ficava no lado oposto ao da recepção. Ainda estava à meio caminho e a moça de traços latinos já exibia um sorriso cujo brilho rivalizava com a luz que vazava dos vitrais.

- Bom dia senhora, em que posso servi-la?

- Um café expresso, por favor.

Enquanto aguardava pensou em como deixar o bilhete sem que a drogada da Lígia o lesse. Pedir um envelope seria humilhante, mesmo porque não tinha como lacrá-lo.

Rosa (era o que dizia o crachá) trouxe o café, acompanhado de torradas integrais e geléia de damasco.

- Você conhece o Dr. Alessandro e Dona Sara ?

- Sim. Mas eles devem estar viajando. Geralmente o doutor esta aqui nesse horário, tomando um café enquanto lê os jornais – respondeu Rosa sorrindo.

Vera considerou deixar o bilhete com Rosa, enquanto mexia a mistura de café com adoçante.

- Mas Alice está em casa. Chegou da rua uns 10 minutos antes de abrirmos – completou voltando para dentro do balcão.

Vera sentiu a vista branquear e escurecer e voltar a branquear. Pegou calmamente uma torrada, passou a geleia e mordeu um pedaço praticamente desprezível. Precisava ordenar os pensamentos. Chamou de volta a atendente.

 - O casal ainda mora na cobertura? – perguntou Vera, estendendo uma nota de um dólar.

- Sim, respondeu Rosa secamente.  - Alice mora no terceiro andar, apartamento 31 – completou quando retornou com o troco.

- Pode ficar, respondeu , sem olhar para a moça.

Vera voltou a sentar-se elegantemente sobre o sofá de couro. Notou que outro atendente se juntara à loura mal educada.

- A senhorita Alice está ?

- Sim Senhora, ela a esta esperando – respondeu o rapaz sem crachá.

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