quinta-feira, 15 de novembro de 2012

Vivam os homens suaves


A influência gay modificou a cultura masculina para melhor
por Ivan Martins

As conversas masculinas raramente são generosas quando se trata dos gays. O comentário mais benigno que eu escuto desde criança é que os gays são legais porque deixam mais mulheres para o resto de nós. Apesar desse clichê, e de tantos outros igualmente bobos, minha impressão é que a influência gay no mundo masculino tem sido enorme nas últimas décadas. Enorme, subestimada e positiva.  

Desde o seu surgimento, nos anos 60, o movimento gay ajudou a redefinir a maneira como os homens agem e pensam a respeito de si mesmos. A existência pública de homens gays ampliou radicalmente o repertório masculino, arejando e diversificando a ideia de masculinidade. Antes da influência gay, o comportamento masculino estava confinado até a página 10 do livro de conduta. Quando os gays emergiram socialmente, eles ampliaram o livro até a página 100. Foi um movimento libertador para todo mundo, que ajudou a melhorar inclusive a vida dos casais, tornando-a menos estereotipada. 

Vamos por partes, para que eu me explique. 

O primeiro impacto óbvio da cultura gay no mundo masculino aconteceu no universo da aparência. Desde os anos 60, os homens se aproximaram dramaticamente das mulheres na maneira de se relacionar com a moda e com o corpo. Dêem uma olhada nas ruas: a garotada está cada vez mais andrógina, confundido os códigos masculinos e femininos. Você olha o garoto, ou a garota, e demora alguns segundos para definir o gênero daquela figura ambígua. E às vezes nem consegue. Essa ambiguidade é um dos resultados radicais da influência gay na aparência masculina. Mas não é o único. Perdeu-se no tempo a reação aos primeiros modismos trazidos pelos anos 60. Aqui no Brasil eram considerados “coisa de viado”. A marchinha de carnaval “Cabeleira do Zezé”, composta em 1963, ilustra bem a reação aos cabelos compridos, que voltavam a ser usados pelos homens desde o século XIX. “Será que ele é?”, perguntava a letra da marchinha.  

Pouco depois, nos anos 70, surgiram as bolsas a tiracolo, os sapatos de plataforma, as calças e camisas coloridas, os colares e pulseiras. Tudo isso pertencia, originalmente, ao universo feminino. Seu uso rotineiro pelos homens foi o equivalente cultural de um grande movimento transformista. Quarenta anos depois, homens e mulheres usam brincos, piercings, tatuagens de cores berrantes, sapatos vermelhos, calças cada vez mais justas e camisetas cada vez menores e mais decotadas. Há uma enorme convergência para o que eu chamaria de “campo gay” da moda. Mesmo os machos acima de qualquer suspeita vestem camisas agarradinhas que mulheres compram para eles nas melhores lojas da cidade. 

O resultado disso tudo é que você olha na rua e não distingue mais o gay do não gay. Além de se vestir de forma parecida, homens gays e heteros estão igualmente malhados, bem definidos, de corpo cuidado. A vaidade que antes era feminina e depois virou gay agora é descaradamente masculina. Há caras perfeitamente macho que depilam o peito, tiram a sobrancelha, cuidam das unhas, fazem mecha nos cabelos. São os metrosexuais, que viraram referência para homens de todas as idades. Um cidadão dos anos 50 que desembarcasse subitamente na Avenida Paulista acharia que metade dos homens se parece com mulher. Do ponto de vista dele, seríamos todos um pouco Laertes. 

No comportamento a mudança foi na mesma direção. O mundo masculino ficou gay. Os homens falam, andam e dançam de uma forma que seria inaceitável nos anos 50. A tendência geral é de feminização. Os heterossexuais ficaram mais suaves nos seus modos. Ou mais estridentes. Mais delicados, certamente, de um jeito que nossos pais e avós estranhariam. É comum que homens nascidos nos anos 60 conversem com caras 20 ou 30 anos mais novos e tenham a impressão de que eles são gays – pelo jeito de falar, pela linguagem corporal, por causa da atitude. A mudança de códigos foi muito rápida e muito profunda. A agressividade e a grosseria, que anos atrás eram a marca registrada de certa masculinidade, caíram em desuso. São mal vistas. Viraram quase um sinônimo de escrotidão. Há nisso uma influência benéfica da cultura gay. Ela modificou e amoleceu a cultura masculina, da mesma forma que o Gilberto Freyre diz que o Brasil fez com a cultura portuguesa – para melhor. 

Essas mudanças, evidentemente, chegaram ao campo dos sentimentos e da intimidade. 

Os homens agora choram sem vergonha nenhuma. Confessam seus sentimentos de um jeito até embaraçoso. Eles ficaram frágeis. As mulheres dizem, ironicamente, que estão com saudades daqueles tipos sisudos e caladões, de sentimentos inescrutáveis. Eles sumiram. Agora os homens são sensíveis. Falam pelos cotovelos e estão cheios de dúvidas e temores. Muitos dão excelentes donos de casa, tremendos pais, cozinheiros de primeira linha - e ainda são ótimos companheiros para fofocar e assistir à novela. Umas moças, enfim, mas com quem as mulheres podem transar gostosamente, uma vez que eles têm uma relação melhor com a própria cabeça e o próprio corpo. Aquele outro tipo, o macho à la Clint Eastwood, estava sufocando seus sentimentos mais viscerais, tinha coisas demais a reter e a esconder. Além de falhar na cama nas horas mais inesperadas, ele era uma panela de pressão pronta a explodir. Ou a ter um AVC ou um enfarte aos 40 anos. 

Aliás, eu acho que a importância do movimento gay vai além das questões pessoais. Ou de casais. Quando um sujeito ou uma mulher lutam pelo direito de fazer sexo com quem desejar – e de andar na rua vestido como quiser, abraçado a quem achar melhor – ele e ela estão lutando, intrinsecamente, pelo direito de todos serem o que são. Os ganhos pessoais e íntimos de alguns se traduz em ganho público para a comunidade inteira. Quando um grupo socialmente discriminado é reconhecido em seus direitos, quando ele ganha espaço para expressar seus gostos e sentimentos (desde que isso não aconteça em prejuízo dos outros), a sociedade inteira se torna um pouco mais livre. Há uma lógica inexorável de contágio que começa com a liberdade do indivíduo, avança para o seu grupo e se espalha para a sociedade toda – e para o mundo. Quando os sinos tocam de júbilo, eles também tocam por todos nós. Gays e não gays.
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Ivan Martins
é editor executivo
da Revista Época,
onde escreve às
quartas-feiras.

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