Estou sentado, calado, ouvindo aquela mesma canção,
interessante ver que você não está só no porta-retrato,
não está só na canção.
Você está na moça que passa apressada na rua,
no meu violão,
no gole de café de manhã cedo, no pão amanhecido.
Então me pergunto se nossas lembranças, nossos lugares,
nossos momentos, agora são só meus.
A viagem de trem até Piraputanga onde, lá sim,
tudo é mais bonito,
o adormecer e o amanhecer no colo, o torcicolo,
o cigarro, o largar o cigarro, a batida de carro,
o estar nu, o estar vestido e ainda assim estar nu e nua,
o binóculo e a lua,
o sobrenome, a fome,
o banho de chuva, o sumiço da luva,
a nuvem em forma de pato, o vizinho chato,
o morro e o mato, o sobe e o desce,
a samambaia que não cresce, a empregada, o desemprego,
o medo, já é tarde e ao mesmo tempo é cedo, o dedo,
o pulso aberto, o sinal fechado,
o pecado, o mercado cheio, o recheio do rocambole,
o último gole da última garrafa,
a explicação sobre o tamanho do pescoço da girafa,
o espinho, a espinha, o cravo,
o cachorro bravo do vizinho chato,
a irmã do Renato, o bujão de gaz., os gazes,
um valete, um rei e três azes,
as brigas, as pazes, as fezes, as fazes,
a T.P.M., o ponto do creme,
o Natal, o Carnaval, as roupas no varal,
o mal, o bem, o Pai, o Filho, o Espírito Santo, Amém,
o banho, a banha, a teia de aranha, a manha,
os discos do Chico, os livros do Paulo, o Jô,
o enterro do seu avô, a saudade da minha avó, o nó,
o copo, o prato, a cama de gato,
o sofá novo, o arroz carreteiro com ovo,
o nem mais nem meio mas, tanto fez, tanto faz,
o antes e o depois, um, dois, feijão com arroz,
o macarrão, a feijoada, a azeitona da empada,
o bolo sem recheio, o belo, o eu e o feio,
o meio de vida, a lida, a pia entupida,
o nome talhado no tronco, o ronco,
o banho no rio gelado, o resfriado,
o chá de mel com agrião, a coberta, a pipoca e a televisão,
o amor no chão, meus amigos do bar da esquina,
sua amiga Cristina, o veneno pra ratos,
seus parentes mais chatos que o vizinho,
o carinho, o passarinho que fugiu do ninho,
a cafeteira, o leite grudado no fundo da leiteira,
aquela sua prima fofoqueira,
o mundo, o cheque sem fundo,
a saudade, sua viagem pra Coxim,
seu jeito de dizer “não” quando “sim”,
o mim, o fim, o fim, o fim.
Tudo perdido como lágrimas na chuva...”
M. D. Insaurralde
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