domingo, 29 de maio de 2011

Geni e o Zepelim

Letra: Chico Buarque
Interpretação:Maria Eugênia
Violão:




De tudo que é nego torto do mangue e do cais do porto
Ela já foi namorada
O seu corpo é dos errantes, dos cegos, dos retirantes
É de quem não tem mais nada

Dá-se assim desde menina na garagem, na cantina
Atrás do tanque, no mato
É a rainha dos detentos, das loucas, dos lazarentos
Dos moleques do internato

E também vai amiúde com os velhinhos sem saúde
E as viúvas sem porvir
Ela é um poço de bondade e é por isso que a cidade
Vive sempre a repetir

Joga pedra na Geni, joga pedra na Geni
Ela é feita pra apanhar, ela é boa de cuspir
Ela dá pra qualquer um, maldita Geni

Um dia surgiu, brilhante, entre as nuvens, flutuante
Um enorme zepelim
Pairou sobre os edifícios, abriu dois mil orifícios
Com dois mil canhões assim

A cidade apavorada se quedou paralisada
Pronta pra virar geléia
Mas do zepelim gigante desceu o seu comandante
Dizendo – Mudei de idéia

Quando vi nesta cidade tanto horror e iniqüidade
Resolvi tudo explodir
Mas posso evitar o drama se aquela formosa dama
Esta noite me servir

Essa dama era Geni, mas não pode ser Geni
Ela é feita pra apanhar, ela é boa de cuspir
Ela dá pra qualquer um, maldita Geni

Mas de fato, logo ela, tão coitada e tão singela
Cativara o forasteiro
O guerreiro tão vistoso, tão temido e poderoso
Era dela, prisioneiro

Acontece que a donzela, e isso era segredo dela
Também tinha seus caprichos
E a deitar com homem tão nobre, tão cheirando a brilho e a cobre
Preferia amar com os bichos

Ao ouvir tal heresia a cidade em romaria
Foi beijar a sua mão
O prefeito de joelhos, o bispo de olhos vermelhos
E o banqueiro com um milhão

Vai com ele, vai Geni ! Vai com ele, vai Geni !
Você pode nos salvar, você vai nos redimir
Você dá pra qualquer um, bendita Geni

Foram tantos os pedidos, tão sinceros, tão sentidos
Que ela dominou seu asco
Nessa noite lancinante, entregou-se a tal amante
Como quem dá-se ao carrasco

E ele fez tanta sujeira, lambuzou-se a noite inteira
Até ficar saciado
E nem bem amanhecia partiu numa nuvem fria
Com seu zepelim prateado

Num suspiro aliviado ela se virou de lado
E tentou até sorrir
Mas logo raiou o dia e a cidade em cantoria
Não deixou ela dormir

Joga pedra na Geni ! Joga bosta na Geni !
Ela é feita pra apanhar, ela é boa de cuspir
Ela dá pra qualquer um. Maldita Geni !

domingo, 8 de maio de 2011

E Drummond responde...

Os Ombros Suportam O Mundo

Chega um tempo em que não se diz mais: meu Deus.
Tempo de absoluta depuração.
Tempo em que não se diz mais: meu amor.
Porque o amor resultou inútil.
E os olhos não choram.
E as mãos tecem apenas o rude trabalho.
E o coração está seco.


Em vão mulheres batem à porta, não abrirás.
Ficaste sozinho, a luz apagou-se,
mas na sombra teus olhos resplandecem enormes.
És todo certeza, já não sabes sofrer.
E nada esperas de teus amigos.


Pouco importa venha a velhice, que é a velhice?
Teu ombros suportam o mundo
e ele não pesa mais que a mão de uma criança.
As guerras, as fomes, 
as discussões dentro dos edifícios
provam apenas que a vida prossegue
e nem todos se libertaram ainda.
Alguns, achando bárbaro o espetáculo,
prefeririam (os delicados) morrer.
Chegou um tempo em que não adianta morrer.
Chegou um tempo em que a vida é uma ordem.
A vida apenas, sem mistificação.



Os versos acima foram publicados originalmente no livro "Sentimento do Mundo", Irmãos Pongetti - Rio de Janeiro, 1940. Veja que isso foi publicado 70 anos atrás e já podemos ver os mesmos conflitos do homem hodierno.