por Carlos Drummond de Andrade
A noite desceu. Que noite!
Já não enxergo meus irmãos.
E nem tão pouco os rumores
que outrora me perturbavam.
A noite desceu.
Nas casas, nas ruas onde se combate,
nos campos desfalecidos,
a noite espalhou o medo
e a total incompreensão.
A noite caiu.
Tremenda, sem esperança...
Os suspiros acusam a presença negra
que paralisa os guerreiros.
E o amor não abre caminho na noite.
A noite é mortal, completa, sem reticências,
a noite dissolve os homens,
diz que é inútil sofrer,
a noite dissolve as pátrias,
apagou os almirantes cintilantes
nas suas fardas.
A noite anoiteceu tudo...
O mundo não tem remédio...
Os suicidas tinham razão.
Aurora, entretanto eu te diviso,
ainda tímida, inexperiente das luzes
que vais ascender e dos bens
que repartirás com todos os homens.
Sob o úmido véu de raivas, queixas
e humilhações, adivinho-te que sobes,
vapor róseo, expulsando a treva noturna.
O triste mundo fascista se decompõe
ao contato de teus dedos,
teus dedos frios,
que ainda se não modelaram
mas que avançam na escuridão
como um sinal verde e peremptório.
Minha fadiga encontrará
em ti o seu termo,
minha carne estremece
na certeza de tua vinda.
O suor é um óleo suave,
as mãos dos sobreviventes se enlaçam,
os corpos hirtos adquirem uma fluidez,
uma inocência,
um perdão simples e macio...
Havemos de amanhecer.
O mundo se tinge
com as tintas da antemanhã
e o sangue que escorre é doce,
de tão necessário para colorir
tuas pálidas faces, aurora.
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