quarta-feira, 31 de outubro de 2012

Madalena, vereadora transexual negra, e o mendigo caucasiano


Por Cidinha da Silva

Eis que o novo hit das redes sociais é um mendigo-gato de olhos azuis. As moças querem levá-lo para casa, dar leitinho na boca, banhá-lo e passar talco. Semelhante ao que ocorre com os moços presos, com penas longas a cumprir, quando arranjam casamento de dentro da penitenciária. Descolam mulheres fidelíssimas, que zelarão pelo nome que o detento lhes dá, e elas, em troca, lhes darão filhos depois das visitas íntimas, que elas mesmas se encarregarão de sustentar.

Há pouco tempo, Renato Rocha, ex-baixista do Legião Urbana, foi descoberto na condição de mendigo nas ruas do Rio de Janeiro. Ele foi famoso, teve algum dinheiro, frequentou badaladas festas de embalo, teve milhares de fãs, deve ainda tê-los, foi belo. Não me lembro de que alguém tenha querido levá-lo para casa, dar leitinho na boquinha e coisa e tal. Parece que preto mendigo, mesmo famoso, é um preto só.

As famílias de Renato Rocha e de Rafael Nunes, este o nome do mendigo caucasiano de Curitiba, têm em comum, além do fato de serem trabalhadoras, desprovidas de lastro econômico hereditário, como os demais membros do Legião, por exemplo, o fato de terem oferecido apoio aos dois filhos desgarrados da orientação familiar que um dia tiveram. Renato e Rafael, por sua vez, como diversos moradores de rua, afirmam-na como um espaço de liberdade, de fuga das normas sociais que os oprime, além de serem usuários de drogas. Existe nestas opções, quando assim se configuram, realmente, um drama humano pouco acessível a nós, mortais de vidinha organizada e previsível.

Um dia, encontrei um homem branco, caucasiano, em um galpão de seleção de material reciclável. Perguntei qual era a história dele. Havia sido empresário, me contaram. Faliu, perdeu tudo e abandonou a família, envergonhado. Antes disso, tomara o cuidado de passar a casa onde vivia com a família para o nome de um amigo-irmão sem vínculo de parentesco. Evitou assim, que fosse penhorada junto com os outros bens para pagar dívidas, garantiu a segurança da família que, grata, um dia o reencontrou. Foram as filhas que contaram a história à assistente social e aos poucos tentavam se reaproximar. Ele, arredio, mal cumprimentava as pessoas, apenas selecionava o lixo e nas horas vagas, lia todas as revistas e livros com os quais se deparava. Só aceitara conversar com a filha mais nova.

Já Urinólia, moça negra, trabalhadora do mesmo local, viera da Maioba, interior do Maranhão, trazida por uma família da região de Higienópolis para trabalhar na casa deles como faz-tudo e mais um pouco. Ao fim do primeiro mês de trabalho, enquanto dormia, o adolescente da casa masturbou-se em cima dela. A moça acordou, gritou assustada e naquele momento mesmo foi expulsa da casa pelos patrões. Vagou dois dias pelas ruas da cidade, bebendo restos de líquidos encontrados no caminho, até lembrar-se que tinha fome e passar a vasculhar o lixo. Depois de uma semana andando a esmo, comendo comida das lixeiras de restaurantes e procurando lugar seco para dormir, encontrou um pessoal catando latas e papelão. Perguntou se podia juntar-se a eles, foi aceita de braços abertos. Sentiu-se mais protegida, dormiam debaixo das carroças, tinham um cachorro como guardião, até que fundaram uma cooperativa e hoje ela mora num quarto de pensão, enquanto constrói a própria casa num mutirão de habitações populares.

Mas Rafael, além de viver um drama humano de brancos e negros, tem o poder de mobilizar sentimentos humanitários que só aos brancos é dado arregimentar. Refiro-me ao sentimento massivamente manifesto de que algo está fora da ordem na hierarquia da gente que vale muito e da gente que nada vale. Rafael Nunes é branco demais (disseram bonito demais) para ser mendigo.



O outro lado da moeda é Madalena, negra, transexual, eleita vereadora em Piracicaba, interior de São Paulo, ameaçada de morte caso assuma a vaga conquistada na eleição deste ano. Uma mulher negra que além de um pênis e um rosto marcado pela vida, tem um corpo negro anti-modelo que não a habilita a desfilar em passarelas ou posar nua para revistas masculinas, como fez Roberta Close, lembram-se? Transexual branca, objeto de desejo de muitos homens socialmente heterossexuais, bem postos e moralmente conservadores, durante os anos 80. Se Roberta, Madalena fosse, tudo se resolveria pelo fetiche, mas uma preta transexual é inaceitável, como também impronunciáveis deveriam ter sido os gritos de auto-defesa de Urinólia. Madalena é preta demais, para ousar ser uma transexual legisladora numa câmara do interior paulistano.

Aqui, enquanto ouço as cordas sublimes do Ponteio afro para violoncelo, do querido Di Ganzá, apuro a motivação racial desses dramas todos. A tragédia cotidiana nas ruas expõe o valor desigual da moeda do racismo para negros e brancos. É sua essência rediviva.

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Cidinha da Silva
é prosadora e editora do 

segunda-feira, 29 de outubro de 2012

O terremoto que abalou a Ciência



Ao condenar sete especialistas por não terem previsto o abalo sísmico que destruiu L’Aquila, um tribunal italiano mostrou que o conhecimento científico é interpretado como dogma religioso pelo senso comum.
por Eliane Brum*

Na semana passada, um tribunal italiano condenou sete especialistas – quatro cientistas, dois engenheiros e um funcionário público – a seis anos de prisão por homicídio culposo (sem intenção de matar). Seu crime: não ter previsto o terremoto que destruiu a cidade de L’Aquila. A condenação gerou protestos no mundo inteiro. Uma carta de apoio aos réus, assinada por 5 mil cientistas, foi entregue ao presidente da Itália, Giorgio Napolitano. O ponto principal contra a decisão da Justiça, presente em todas as manifestações, é: “A Ciência, hoje, não tem meios para prever um terremoto. Logo, os cientistas não podem ser responsabilizados por algo que está além da sua capacidade”.  

A questão que me parece interessante pensarmos é justamente o avesso: por que o tribunal e a população de L’Aquila acreditaram que a Ciência poderia prever o terremoto, a ponto de centenas perderem a vida e milhares perderem suas casas em nome dessa crença? 

Primeiro, os fatos. Em 2009, uma série de tremores atingiu a região de L’Aquila, no centro da Itália, durante meses. Em 6 de abril daquele ano, um terremoto de 6,3 graus destruiu L’Aquila, matando mais de 300 pessoas, ferindo 1500 e deixando cerca de 65 mil desabrigados, além de reduzir o patrimônio histórico e artístico a escombros. Seis dias antes, os sete especialistas, que integravam a Comissão Nacional de Grandes Riscos, haviam se reunido na cidade. Depois de mais de um ano de julgamento, o tribunal acolheu a tese da promotoria: “Os cientistas deram informações inexatas, incompletas e contraditórias”. Ao subestimarem a possibilidade de ocorrer um terremoto de grandes proporções, teriam levado as autoridades a não tomarem providências e a população a não se proteger.

Em uma carta ao presidente italiano, Alan Leshner, CEO da poderosa American Association for the Advancement of Science (Associação Americana para o Avanço da Ciência), enumera os principais argumentos contra a criminalização dos cientistas: 1) As acusações são injustas e ingênuas, na medida em que não há método científico capaz de prever terremotos com precisão; 2) Não é razoável esperar mais do que os cientistas podem fazer com o conhecimento atualmente disponível; 3) Condenar cientistas por supostamente falharem em previsões hoje impossíveis terá efeitos perigosos para o conjunto da Ciência, na medida em que inibirá a livre troca de ideias e a circulação de conhecimento, fundamentais para o avanço de pesquisas científicas de grande interesse público. 

São colocações pertinentes e sensatas. Não há conhecimento científico suficiente para prever terremotos, logo não é justo responsabilizar cientistas por não preverem o que não pode ser previsto. Argumentos como estes foram usados pela defesa durante o julgamento, mas foram vencidos por depoimentos como o de Guido Fioravanti, que perdeu o pai no terremoto. Ele contou ter ligado para a mãe, logo depois do primeiro tremor: “Lembro-me do medo em sua voz. Em outras ocasiões, eles teriam fugido. Mas, naquela noite, com meu pai, eles repetiram a si próprios o que a comissão de risco tinha dito. E permaneceram”. 

De volta, então, à pergunta do início desta coluna: por que os cidadãos de L’Aquila interpretaram a incerteza da comissão sobre a possibilidade de um terremoto de grandes proporções como certeza, a ponto de permanecerem na cidade mesmo depois do primeiro tremor mais forte?  


A Ciência e o método científico são o oposto do dogma. Esta é justamente a sua beleza. Ao contrário da Religião, onde a premissa do fiel é a fé, na Ciência é preciso duvidar. O processo científico não é impulsionado por certezas, mas por dúvidas. E é por causa delas que usufruímos das descobertas impressionantes que se fazem presentes em todas as áreas do nosso cotidiano. Enquanto na Religião é imperativo crer, na Ciência é obrigatório duvidar, testar, provar. A incerteza é, portanto, matéria primordial da Ciência. É sua força – e não sua fraqueza. 


O problema é quando a Ciência é interpretada a partir das premissas da Religião. Quando suas conclusões – ou mesmo a falta delas, como foi o caso italiano – são recebidas como dogmas, verdades absolutas e inquestionáveis. Talvez seja isso que possa ter acontecido no terremoto de L’Aquila.  

Para os cientistas, como o americano Alan Leshner, é muito claro que – ainda – não se pode prever a ocorrência de um terremoto. E, no caso da Ciência, o “ainda” é muito importante, porque é provável que, no futuro, seja possível prever um terremoto. Mas, por enquanto, o que se pode fazer é reconhecer áreas com risco de abalos sísmicos e tomar precauções para minimizar os danos, como reforçar a estrutura dos prédios – o que está longe de ser pouca coisa. Leshner definiu as acusações contra os cientistas como “ingênuas”. Como se dissesse: “Ora, todo mundo sabe que não se pode prever um terremoto, como eles não sabiam disso”? 

Para o pai de Guido Fioravanti e outros tantos milhares de cidadãos de L’Aquila, porém, não era nada óbvio. Para a maior parte da população, se havia possibilidade de um terremoto, os cientistas teriam avisado. Como não avisaram, eles permaneceram em suas casas – e por isso morreram.  
Foi um ato de má fé dos cientistas? Não. Foi um ato de má fé da população de L’Áquila? De certa forma, sim. Má fé no sentido de que a Ciência demanda razão – e eles escutaram a palavra dos cientistas como crentes. Os cientistas diziam, possivelmente com palavras menos claras: “Não podemos prever” ou “Não temos certeza”. E a população entendeu: “Não vai acontecer”.

Agora, é importante pensarmos: a população de L’Aquila entendeu mal apenas por ingenuidade, como sugeriu Alan Leshner? Em parte, sim. Mas não só. É preciso perceber que os cientistas estão implicados nessa interpretação equivocada. Se no senso comum acredita-se que a Ciência pode tudo não é porque o cidadão, na Itália ou aqui, tirou isso da própria cabeça. Nosso cotidiano é povoado por pequenos confrontos com a arrogância exercida em nome da Ciência – hospitais e consultórios médicos são um dos exemplos mais triviais nos quais questionamentos têm grandes chances de serem mal recebidos. De tal forma nossa confiança na infalibilidade da Ciência é incorporada no dia a dia que, quando queremos provar ao nosso interlocutor a veracidade de nosso argumento, declaramos: “É científico”. Mesmo na imprensa, é comum buscar alguma pesquisa científica para emprestar credibilidade a uma tese. E até mesmo crenças religiosas, como o criacionismo, são travestidas por alguns grupos como “teorias científicas” para ganhar prestígio junto aos fiéis, quando suas certezas pertencem apenas ao campo da fé.

A Ciência, seus limites e seus enormes desafios são mal interpretados pela população porque falta divulgação científica de qualidade, cientistas dispostos a explicar ao cidadão quais são as premissas do método científico, as bases para as principais descobertas e o que está em jogo nas decisões sobre o nosso mundo, cada vez mais influenciadas pelo avanço tecnológico. É conhecida a enorme dificuldade que a comunidade científica tem para cumprir sua responsabilidade de se comunicar com a população. Mas também são mal interpretados porque parte dos cientistas esquece sua falibilidade vezes demais na prática cotidiana.

De certa forma, o protesto da comunidade científica internacional pela condenação de seus colegas italianos é: “Por que vocês acharam que a Ciência poderia prever um terremoto”? E a resposta que o pai de Guido Fioravanti talvez pudesse dar, se tivesse sobrevivido, seria: “Porque em algum momento vocês, cientistas, nos levaram a acreditar que podiam tudo”.

Embora a comunidade científica internacional tenha interpretado a condenação dos sete especialistas no tribunal italiano como um ataque à Ciência, talvez valha a pena pensar na possibilidade de ter ocorrido o contrário. Familiares de vítimas, promotoria e juiz supervalorizaram tanto a Ciência que deram a ela poderes que não tem. Se parte da população encontra dificuldades para compreender os princípios científicos que tornam possível uma simples lâmpada acender a cada anoitecer ou um avião atravessar o mundo voando em algumas horas, talvez seja difícil acreditar que cientistas tão eminentes não tivessem podido prever um terremoto. E, por isso, concluíram: “Esses homens, que podem tanto, só não nos salvaram porque foram negligentes”.

Os sete condenados estão pagando individualmente por uma crença coletiva. Estão pagando por uma visão da Ciência na qual há muitos protagonistas envolvidos, nas mais diversas esferas da sociedade. Espero que a condenação seja revogada nas instâncias superiores do Judiciário italiano. Mas seria uma pena que o episódio ficasse reduzido a certo e errado, conhecimento e ignorância, “nós que sabemos” contra “vocês, os ingênuos”.

Os 5 mil cientistas que assinaram a carta de protesto contra a condenação têm a obrigação moral de refletir sobre por que milhares de cidadãos de L’Aquila interpretaram a incerteza de seus colegas como certeza. Têm a obrigação moral, também, de compartilhar a responsabilidade sobre essa interpretação equivocada, que resultou na morte de mais de 300 pessoas. Se não fizerem isso, só estarão colaborando para que a Ciência continue a ser mal compreendida, abrindo espaço para novas tragédias humanas, quando não para um julgamento como este, que deixou cada um deles temeroso de divulgar informações científicas relevantes para o público, porque poderão ser julgados depois não pelo que sabem, mas pelo que não sabem.

Há ainda uma outra dimensão sobre a qual vale a pena pensar. Vivemos numa época na qual a ilusão de controle alcançou níveis perigosos. Diante da nossa abissal fragilidade, da incerteza de estar vivo no dia seguinte, do imponderável que trespassa cada existência, agarramo-nos a qualquer fantasia de poder controlar e impedir catástrofes. Mas se avançamos imensamente, em grande parte por causa da Ciência, continuamos presos ao nosso trágico destino humano, no qual a única certeza é o fim. Talvez ainda mais difícil de aceitar, agora que já conquistamos tanto.

Ao sentir o chão tremer debaixo dos seus pés, talvez o pai de Guido Fioravanti tenha atribuído poderes à Ciência semelhantes aos emprestados pelos homens pré-históricos aos primeiros deuses. Como não podem botar nenhuma divindade no banco dos réus, os cidadão de L’Aquila, devastados pela dor, culpam aqueles que encarnam um lugar de grande poder, saber e prestígio no mundo atual. Continuam sem querer perder as ilusões de controle, sem conseguir lidar com a incerteza de que outro terremoto não vá acabar com tudo outra vez. Os sobreviventes de L’Aquila podem estar punindo os cientistas por uma promessa que talvez nunca seja cumprida: a de que a Ciência um dia possa nos salvar de nosso destino mortal. Uma fábula que, como sabemos, os cidadãos de L’Aquila não inventaram sozinhos. 

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Eliane Brum, 
jornalista, escritora 
e documentarista, 
escreve às segundas-feiras 

terça-feira, 16 de outubro de 2012

é difícil










"É difícil olhar só pra frente
quando ficou tanta vida pra trás."
- marcos daniel -