"Em que momento uma flor de lótus começa
a nascer dentro de quem amamos? De nós?
Desde sempre, talvez seja a resposta mais correta.
Não sabemos quando ela vai florescer carregando
com ela aquilo que chamamos de real. Mas sabemos que vai.
E quando ela floresce dentro do corpo que amamos,
o que é lógico, rotineiro, deixa de fazer sentido."
por Eliane Brum
No filme A Espuma dos Dias, Colin e Chloé se casam e, logo depois, uma flor de lótus nasce no pulmão direito dela. O filme surreal de Michel Gondry não foi um sucesso nem de público, nem de crítica, e já está escorregando para fora da programação dos cinemas no Brasil. “Exagerado, pirotécnico demais” é o comentário mais frequente. Baseado no livro-cult publicado pelo francês Boris Vian em 1947, A Espuma dos Dias fala da paixão solar que fenece no casamento e na linha de montagem do capitalismo industrial. Fala de amor e de morte. E a razão pela qual não consigo me esquecer dele é a flor de lótus que desabrocha no pulmão de Chloé. Essa imagem terrível e bela da flor branca dentro do corpo de quem se ama.
Em que momento uma flor de lótus começa a nascer dentro de quem amamos? De nós? Desde sempre, talvez seja a resposta mais correta. Não sabemos quando ela vai florescer carregando com ela aquilo que chamamos de real. Mas sabemos que vai. E quando ela floresce dentro do corpo que amamos, o que é lógico, rotineiro, deixa de fazer sentido. No filme, os objetos se movem, a campainha tem pernas e sai correndo pela casa quando alguém a toca e enguias deslizam das torneiras. Isso é mais plausível para quem perde seu amor do que a enormidade do que acontece dentro de um corpo que é referência espacial na geografia cotidiana, de um corpo que às vezes é a própria casa, a única que queremos habitar.
Trabalho com o tema da morte há alguns anos e percebo que para muitos que perdem – e se começa a perder ao abrir o exame e descobrir que há uma flor de lótus em alguma parte irremovível ou com galhos longos demais – torna-se difícil viver num mundo em que os objetos são inanimados e as enguias só são vistas em filmes da National Geographic ou em pratos de restaurante japonês caro. Há um surrealismo no mundo que foi transtornado pelo advento da flor, mas que o nega, comportando-se, junto com todos os outros que por ele andam, como se não estivesse para sempre corrompido pela morte.
Nesse mundo transtornado pela flor, só haveria um cartaz possível para levar a um protesto na Paulista. Ou na Brasil. Ou na Champs-Élysées ou na Praça Taksim. “Tem uma flor de lótus no estômago do homem que eu amo”. Olho para essa mulher que acaba de descobrir que ficará só, a escuto e a imagino solitária, patética, segurando uma cartolina tosca na avenida. Nua entre 20 centavos, Copa, SUS, Renan Calheiros, Belo Monte. Nua e louca empunhando a única denúncia que todos nós faremos um dia, a denúncia tão inescapável quanto inútil da condição humana.
Quem descobre a flor de lótus no corpo de quem ama espera a cada manhã por um sinal de que o mundo de fora vai espelhar o de dentro. De que ao entrar no elevador do prédio não haverá um vizinho com seu cachorro, mas um elefante cor-de-rosa. Confrontada com a lucidez da condição humana, só é possível encontrar lógica em elefantes cor-de-rosa. Na padaria, na fila do pão, a expectativa dessa mulher é de que a moça tenha cauda de peixe, como uma sereia em terra firme, e o pãozinho francês pisque para ela da prateleira com pestanas tão longas quanto as de uma lhama. Em vez disso, nada acontece. A moça do pão é fria, quase ríspida. Ela então gagueja. Não sabe mais se pede os dois pãezinhos de sempre, porque ele gosta de pão novo, ou se pede três, por causa da flor, agora que a relação deles se tornou um triângulo. Pede dois, porque sabe que o mundo só aceitará o pedido de dois, mas sabe que está errado. E sabe que está errado porque o que não sabe é como fará quando tiver de se arrastar até a padaria para pedir um pãozinho só. Há décadas essa mulher não sabe como é pedir um pão só.
Conheci um homem que tinha medo da flor dentro do pulmão da sua mulher. Ele não imaginava o que havia lá como uma flor, mas vou chamar assim aqui. Ele nunca pôde dizer o que era ou que forma tinha. Mas quando se deitava na cama com ela à noite, escutava a respiração da coisa ou da flor. E não podia dormir. Esgueirava-se para fora da cama e passava o restante da noite assistindo a filmes na TV da sala. Perto do amanhecer ele voltava, e talvez ela só fingisse não perceber. Ele a abraçava, como fazia havia mais de 20 anos, mas não sabia a quem pertencia o coração que batia no peito dela. Numa dessas quase manhãs em que tinha seguido esse ritual agora rotineiro, dormiu e sonhou que acordava. Abria os olhos e não havia mais ela. Só a flor ao seu lado na cama – ou o que ele não ousava representar.
Uma mulher agarrou meu braço um dia na porta do quarto do hospital onde tratavam a flor que agora fazia fotossíntese no tórax do seu marido. “Você sabe que eu sempre me irritei porque meu marido deixava a roupa jogada no chão do banheiro quando ia tomar banho?” Eu sei, mas não faz mal, arrisco. Eu também me irrito com o meu. Ela nem me ouviu, não estava contando que eu dissesse nada. “E agora, antes de vir para cá, eu esperava que ele fizesse isso. E quando ele fazia, eu me trancava no banheiro e chorava, porque não há nada mais lindo do que as roupas dele jogadas no chão.” Eu me acovardo, tenho pressa de ir embora. Mas ela ainda não terminou e suas mãos são garras no meu braço. “Eu sei que é ridículo, mas só penso nisso. Que ele possa voltar para casa e jogar as roupas no chão do banheiro. Você acha que eu estou ficando louca?” Eu garanti que não, eu não achava. E não achava mesmo. “Você acha que ele vai voltar para casa?”
A resposta para essa pergunta veio horas depois. Ele morreu na madrugada, como tantos. Para quem perde, as madrugadas são as mais perigosas, descobri naquele hospital. Eu a vi sentada na cama, de costas para a porta, as sacolas arrumadas, uma réstia de sol infiltrando-se pela janela. Não consegui entrar nem dizer nada. Eu só queria sair dali e correr para casa para me assegurar de que o homem que eu amo tinha largado a roupa no chão e, ao contrário de todos os outros dias, amá-lo mais por isso.
Como capturar esse momento, um segundo antes da flor desabrochar? Como perpetuar a ilusão? Ou a ignorância? Algo do que é mais belo na literatura e no cinema foi feito como gesto de captura do amor levado pela morte. Como as imagens que Agnès Varda fez do marido, o cineasta francês Jacques Demy, ao filmar a pele do homem amado e doente em Jacquot de Nantes. O homem que ela perdia, mas cuja pele esquadrinhou, cada poro para sempre ali. Imagem, impalpável, mas ali. Ou naquele que, para mim, é o melhor livro de Lya Luft, O lado fatal, em que ela transforma em poesia a dor pela morte do psicanalista Hélio Pellegrino. Ou o homem anônimo que só planta rosas, já que falamos de flores, para levar ao túmulo da mulher. Cultiva vida no seu jardim para levar a ela, numa tentativa de se rebelar a cada semana com a morte que a silenciou. Como se dissesse: eu vou dar vida a você, alguma vida, ainda que tenha de deixá-la sobre o seu túmulo.
Volto para casa depois de assistir à Espuma dos Dias e sinto um medo irracional das flores que me rodeiam. Olho desconfiada para as orquídeas que há anos são a moldura da minha janela e que me ficam às costas enquanto escrevo. Quando a flor de lótus desabrochar em mim ou no meu amor, não digam que enlouqueci quando eu afirmar que há enguias nas torneiras ou hipopótamos voando junto com os aviões de carreira. Não há nada mais surreal do que o amor e a morte.
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Eliane Brum,
jornalista, escritora
e documentarista,
escreve às segundas-feiras