terça-feira, 22 de janeiro de 2008

Fragmentos___içami tiba

Domingo chuvoso, café na cama

Um casal jovem e saudável, que acorda todos os dias na maior correria para ir ao trabalho, normalmente guarda um domingo, ou parte dele, para que possam se dedicar um ao outro.

O corpo do cobra acorda na mesma hora de sempre. O corpo ignora que é domingo, que ele pode dormir ate mais tarde, e já quer movimentar-se. O cérebro do cobra aocrdou também. Quantas vezes o cérebro desperta mas o corpo recusa-se a levantar, e quantas vezes o corpo acordou, levantou-se, foi ao banheiro, tomou café, e o cérebro so acordou na mesa do trabalho.

Para o cobra, é um sacrifício continuar na cama se o cérebro e o corpo já acordaram. Ele olha a mulher, relaxada, com o corpo querendo acordar e metade do cérebro ainda dormindo. Como ela é linda! Mesmo de manhã, ao acordar...

A realidade é dura para ambos - principalmente pela manhã, ao despertar. É mau hálito, secreção nos olhos, barba crescida, cabelo despenteado... Nem falo de dentaduras e de outros que tais. O bom humor, o clima sedutor, a maquiagem, a elegância, a roupa de festa e tudo o mais se foi com a noite. A claridade da manhã mostra as sobras do que foi maravilhoso de madrugada.

Mas, afinal, é o amor dele que a torna tão linda, mesmo despertando aos poucos... Ele pensa: vai ser muito bom trazer o café na cama para ela. Ela vai gostar. Que ótimo se ela acordar bem, contente, feliz por receber o café na cama. Já que está chovendo lá fora, o melhor tempo está dentro de casa, só nós dois. Quem sabe se depois rola alguma coisa...

Vai para a cozinha e prepara uma bandeja com tudo de que ela gosta: café, leite, adoçante preferido, geléia de damasco, peneirinha para não deixar a nata do leite passar, pães aquecidos, guardanapo, talheres... Esfrega as mãos de satisfação ao olhar a bandeja pronta. Imagina que sua obra-prima ficaria ainda melhor com aquela florzinha roubada do arranjo da sala, que ele coloca num bonito cálice com água. Faz ainda uma última verificação e pronto: perfeito!
Entra no quarto cantarolando suavemente um bom-dia, meu amor. Tem a felicidade estampada no rosto amante de quem serve, numa caprichada bandeja, o néctar dos deuses à sua amada.

O coração dela se enche de ternura. Com o corpo invadido de puro amor, ela se abre num sorriso de entrega total e deixa escapar um suspiro apaixonado. E ele, que se delicia com o que está acontecendo, deleita-se ainda mais ao imaginar o que vai suceder logo depois...

Com seu olhar de polvo que vê tudo de uma vez sem praticamente mover os olhos, ela repara que falta manteiga na bandeja. Despretensiosamente, solta um suave gosto tanto de manteiga, como se nada estivesse acontecendo.

Mas a frase solta no ar fere a organização mental do cobra. Ele sente um mal­ estar, logo identificado como uma pontada de raiva por ter sido descoberta uma falha. O cobra não admite erros, muito menos os dele. E vir dela a descoberta do erro torna tudo ainda pior. Ele sente-se como que acusado pela polvo.

Já um tanto ríspido, reage: manteiga? Manteiga! Ah, sim, a manteiga. Com seu olhar de cobra, examina a cena como se olhasse através de um tubo de papel. Vasculha cada centímetro da bandeja e verifica, uma coisa de cada vez, tudo o que há sobre ela. Só falta traduzir em palavras o que vê: leite, café, pão, geléia, flor (até flor!), talheres, guardanapo, peneirinha... Ele confere tudo... E não é que ela está certa? Falta manteiga.

Gosto tanto de manteiga... Essa maneira de falar o deixa irritado. Por que ela não diz logo o que quer em vez de ficar cheia de dedos, ou melhor, de tentáculos? Qualquer cobra diria direta, frontal e naturalmente: você me traz a manteiga? O que o cobra não entende é que a polvo quis poupá-lo. Afinal, ele estava sendo tão gentil, era tudo tão romântico que ela não quis estragar o clima por causa da falta de manteiga.

O cobra, porém, reassume o comando da situação com um decidido pode deixar, meu bem, é pá-pum e a manteiga estará aqui! E sai rapidinho atrás da manteiga. Chega à cozinha, abre a geladeira e, com seu olhar em tubo, vê coisa por coisa: leite, iogurte, verduras, sobras de refeições bem guardadas em potes plásticos, refrigerantes, ovos ­mas nem sinal ,da agora maldita manteiga.

Cobra detesta admitir que não consegue resolver problemas. Isso fere sua onipotência. Então, da porta da geladeira, ele grita, furioso: onde você escondeu a manteiga? Se estivesse atacada pela progesterona, ela responderia na mesma moeda: você nunca acha nada! Não acha manteiga, cuecas, meias... Não agüento mais viver assim. E o tempo fecharia de vez no coração dela.

Mas, como está sob o domínio do estrogênio, quase no cio (ovulação), ela solta um amável pode deixar, meu amor, eu pego a manteiga. Então levanta-se languidamente e caminha como se estivesse desfilando numa passarela, sedutora, com a camisola esvoaçante deixando entrever as peças íntimas. Na cozinha, ela abre suavemente a porta da geladeira. Então, com seu olhar de polvo, como se estivesse enxergando o nada, estica um dos tentáculos e pega a manteiga: está aqui, amor!

Como a polvo pode resolver tamanho problema com essa incrível facilidade? O cobra se sente mal. Fica emburrado e não quer mais tomar o café na cama. A polvo atestou sua incompetência.Ele sairia de casa para andar, refrescar a cabeça, resolver tudo e só então voltaria. E assim aquele sonho de manhã de domingo se transformaria numa trágica manhã de domingo. Mas, por estar motivado para o amor, ele deixa de ser cobra e coloca o incidente na caixinha “imprevistos acontecem”. Senta-se na cama com a mulher para saborearem juntos o café da manhã - inclusive o pão com manteiga.

E a polvo estava entrando no cio!

(Içami Tiba in:Homem Cobra, Mulher Polvo)

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