Num ameno domingo de dezembro, véspera de Natal, a dona-de-casa
Doralice Carvalho estava sentada na pequena varanda de sua moradia na ruaPedro
Soares deAndrade,em São Miguel. Olhao bairro conhecido que já principia a
esmorecer de movimento, sossegando no começo da noite. Ao seu lado, também
ocupando uma cadeira de plástico branco, seu marido e químico aposentado, Josué
Carvalho, faz partedo silêncio. Filhos já criados e casados, os dois já
entravam na casa dos 60.
– Dora, qual a cor do vestido que você está hoje?
Fogem os devaneios de Dora. Naquele preciso momento, a mulher pensava
numa longínqua data de setembro de 1973, dia de seu casamento. Então, ela
responde uma cor qualquer que tinha retida na memória – azul –, que Josué
gostava na vida de outros tempos.
Retoma-se o mesmo silêncio de muitos casais antigos. Ela olha em
direção às curvas do rio Tietê e, depois, volta para suas antigas lembranças.
Numa tarde, estava no Clube da Nitro. Uma fita amarela, que lhe prendia os
cabelos, foi o começo de tudo. Quando ela se desprendeu, arrancada pelas mãos
ágeis de Josué, os seus cabelos esvoaçaram-se ao vento. Ele acalmou-os, depois
desfez o nó do laço e jogou a fita sobre as águas. A fita, então, rodopiou na
beira da murada da ponte, caiu, teimou em afundar e ficou boiando.
– O que fiz? – ele se assustou.
Os dois jovens ficaram olhando a fita pegando o rumo da correnteza, até
o último momento. Depois, olharam-se parados, sonhando. E riram.
A partir daí, sempre aquela impressão que eram namorados, mesmo. Dora
sabia amá-lo. Sorria, sempre, contente. Ele fantasiava histórias, imaginava
casos e vestia-os de engraçado. Contava, ria também.
Casaram-se na antiga igrejade São Miguele, durante os cinco dias
seguintes, se conheceram mais intimamente num pequeno apartamento emprestado
por um colega de trabalho na praia do Gonzaguinha,em São Vicente.
Depois, o dia após dia. Muitas vezes, nalguma tarde, andava apressada –
cheia de compras, o dia tão curto –, quase correndo no meio da rua, para
esperá-lo. Labutava duro nos cuidados com a casa, mudava, trocava os móveis
toda semana de canto. Ele chegava, olhava, aprovava, dizendo bonito. Outros
dias, em começos de anoitecer, se assustava em imaginar que aquele seria o
instante em que não veria mais o bater do trinco no portão, o limpar de sapatos
no capacho, o girar da chave na fechadura. E Dora na sala esperando-o mesmo
sabendo que ouviria apenas o seu cansado boa-noite.
Uma noite esperou. Espera fora de costume. Deu para reparar em tudo que
era gente que passava na rua. Na cozinha, imaginava ouvir o trinco no portão.
Corria à janela, de onde podia vê-lo passar pela varanda. Mas ele não chegava.
Então, o trouxeram da fábrica de química. Havia passado a noite no hospital.
Ataduras cobrindo-lhe a face, se maldizia:
– Maldito acidente. Onde meus olhos ficaram?
Não se conformava:
– Antes a morte. Sem vista no mundo, pra quê?
Calada, ela ouvia tudo aquilo e sabia que na vida, em muitos de seus
meandros, não há caminhos de volta. Para
confortá-lo, sempre respondia:
– Pra tudo tem um jeito.
Nessa tarde de domingo em que abre suas lembranças no vazio de seu
bairro, ela sabe que os móveis, faz muito tempo, permanecem intocados. Mãos
espalmadas no braço da cadeira, ela sabe que Josué nunca será o mesmo.
Agora, como faz sempre, ele chama:
– Dora, me ajuda a ir ao quarto.
Ela desvia o olhar da rua vazia. Levanta. Puxa as sandálias debaixo da
cadeira. Chora penosa e limpa as vistas no vestido, que é azul mesmo.
Aproxima-se dele e pousa a mão em seu ombro.
Ele levanta seguindo a mulher. Ela guia seu corpo, livrando-o dos
baques no sofá, na mesinha de televisão, na porta do quarto.
Junto à cama, ela ajeita o lençol e o travesseiro. Ele senta. Tateia e
segura sua mão. Há um sinal de amor antigo e gratidão. Não dá para ver seus
olhos.
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Texto de autoria de Roniwalter Jatobá, publicado no Blog da Editora Boitempo.
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