"(...) Temos duas vidas: uma visível,
assumida, às claras; e outra secreta.
Uma “evidente”, “cheia de verdades convencionais
e de mentiras convencionais”,
exatamente igual a de todos;
e outra que transcorre nos vãos."
(...) Fui na hora tomada por uma
golfada de felicidade. Ela não estava aflita porque perdera o informe do
imposto de renda enviado pelo banco, ou seus brincos de pérola, ou um vinil dos
Secos & Molhados. Não. B perdera a pessoa.
“Hum”, fiz eu, em boa performance
psicanalítica. B explicou-me então que não sabia quando perdera a pessoa, mas
podia localizar o momento exato em que descobrira que a tinha perdido. Ela
tomava um chocolate quente e tentava ler as notícias do jornal. (...) Neste
ponto da leitura, B havia corrido ao Twitter para entrar na campanha “Veta
Dilma. Veta Tudo”. Engatou alguns diálogos de 140 caracteres com desconhecidos
conhecidos, deu alguns cliques e, quando voltou a tomar um gole de chocolate,
percebeu que o leite esfriara. Foi nesse instante, me garantiu ela, que
descobriu que tinha perdido a pessoa.
B tinha acabado de ler um conto e
um romance russos. O famoso “A dama do cachorrinho”, de Tchekhov, e o
“Oblómov”, de Ivan Gontcharov. A combinação dos dois fez com que uma lâmpada se
acendesse dentro de B – e, de súbito, ela descobriu o que não estava mais lá. A
pessoa.
Em “A Dama do Cachorrinho”, Tchekhov
nos mostra, através de uma história de amor, que temos duas vidas: uma visível,
assumida, às claras; e outra secreta. Uma “evidente”, “cheia de verdades
convencionais e de mentiras convencionais”, exatamente igual a de todos; e
outra que transcorre nos vãos.
No caso do personagem de
Tchekhov, tudo o que era para ele indispensável, relevante e sincero, tudo o
que não era engano, se passava no escuro de si. E tudo o que era “sua mentira,
sua casca, na qual ele se escondia para encobrir a verdade”, como seu trabalho
no banco, as discussões no clube, os compromissos sociais com a esposa, tudo
isso era visto e compreendido como se fosse ele – mas era apenas aquilo que o
ocultava.
Neste ponto, B começou a chorar.
“Não vale a pena ter uma vida em que o mais importante de mim precise respirar
nas sombras”, dizia. “Meus eus devem coincidir.” Havia uma nota tão rascante em
seu choro, como uma porta enferrujada por anos que começa a se abrir à
força.“Você é tudo isso”, eu disse, numa tentativa de consolo. “Inclusive essa
máscara social que você usa para que o mundo não te mastigue.”
B apenas chorou mais. “Você não
está entendendo. Eu não estou recusando o contraditório de mim. Eu estou
recusando essa máscara que me torna alguém plano e palatável. Vale a pena viver
escondendo as verdades que mais me importam?” B agora tinha raiva, e apontava
essa raiva para mim. Ela continuou: “Se o mundo quiser me mastigar, que
mastigue. Mastigará carne, e não um cupcake.” Desta vez, eu apenas disse:
“Estou indo praí”.
Encontrei B estatelada no sofá,
olhando para o teto. O rosto inchado de choro, mas já com o peito subindo e
descendocom regularidade. Eu não havia lido o “Oblómov”, porque nunca encontrei
uma tradução para o português que me animasse. Mas sabia que era uma sátira sobre
a imobilidade da aristocracia russa em meados do século XIX, diante dos
acontecimentos que precederam e anunciaram a revolução de 1917.
Não para B.
Durante mais ou menos 150 páginas
de romance, Oblómov não sai do seu sofá. Incapaz de agir e de escolher, o
personagem se imobiliza. Como B, no momento em que me conta sobre ele. Oblómov
recebe visitas de pessoas que representam diferentes papéis no espectro da
sociedade da época. E, quando essas pessoas lhe contam do mundo, lhe contam do
mundo por suas ações e pelas ações de outros, Oblómov só faz pensar: “Cadê a
pessoa?”.
Pensei que B estava adivinhando
sentidos no romance que só faziam sentido em seu estado delirante. Mas, dois
dias depois do enigmático telefonema de B, eu me distraía com um livro bastante
delicioso chamado “Os possessos – aventuras com os livros russos e seus
leitores” (Leya), quando descobri que a autora, Elif Batuman, tinha lido
“Oblómov” com um olhar muito semelhante ao de B.
Em seu livro, Batuman, uma
americana de origem turca que hoje vive em Istambul, entrelaça os escritores
russos e seus protagonistas com os personagens contemporâneos do mundo
acadêmico que inventam sentidos para suas vidas a partir da interpretação de
suas obras. E o faz com humor, sensibilidade e sarcasmo. Sorri ao pensar que B
e eu também cometíamos um pequeno enredo desatinado, às voltas com os russos
que nos uniram por acaso depois de tanto tempo.
Batuman afirma, em um dos ensaios
do livro: “Vejo agora que o problema da pessoa era a chave da preguiça de Oblómov.
Ele é tão avesso a se reduzir a soma das ações que decide sistematicamente não
agir– e desse modo revelar mais inteiramente sua verdadeira pessoa, e
deleitar-se nela, não adulterado”. Publicado em 1859, “Oblómov” quase coincide,
no tempo, com a obra-maravilha do americanoHerman Melville: “Bartleby, o
escriturário”, livro que faz parte dos meus amores mais profundos. Como
Oblómov, mas diferente dele, Bartleby a tudo apenas dizia: “Prefiro não fazer”.
Assim é descrita uma das visitas
recebidas por Oblómov em seu já mítico sofá. “Um antigo colega do serviço
público conta a Oblómov da sua recente promoção a chefe de seção, seus novos
privilégios e responsabilidades. ‘Com o tempo ele será um figurão e conseguirá
um alto posto’, Oblómov pondera. ‘Isso é o que a gente chama de uma carreira!
Mas como requer pouco da pessoa: sua mente, seu desejo, suas emoções não são
necessárias.’ Esticando os membros, Oblómov sente-se orgulhoso por não ter
relatórios a preencher e pelo fato de ali no sofá ‘haver amplo espaço tanto
para as suas emoções como para a sua imaginação’. ”
Um século e meio mais tarde, B,
no sofá da sala de seu apartamento de classe média paulistana, encarna Oblómov
à sua própria maneira: “Cadê a pessoa?”. Ou: “Perdi a pessoa!”. B conta-me que
se sente exposta, toda virada pra fora, uma mulher em seu avesso. Nos últimos
anos ela se tornara uma personagem das redes sociais. E , desde que nos
reencontramos, tenta me convencer a entrar no Facebook. B gosta de viver em
rede e está longe de ser uma solitária que achou um jeito de existir na
internet. Apenas que ela pensara ter se feito presente ali mais do que em
qualquer outra geografia. Mas, de repente, B não mais se reconhece no
personagem que criou. “Virei uma prisioneira”, ela diz. “Do quê?”, pergunto eu,
a essa altura já bastante perturbada. “Dessa persona pública que me tornei.
Todo mundo me conhece, e eu me desconheço.”
B descobrira que era uma pessoa –
sem pessoa. “Estou reduzida a ações, a verbos. Virei um noticiário, eu, que
nunca acreditei em fatos. Mesmo quando analiso, quando infiro, quando
relaciono... são ações. É um eco, só um eco. Não sei mais onde está a voz que o
gerou.” Diante dela, eu tentava descobrir a pessoa em mim que poderia resgatar
a pessoa de B. Aquilo que me levara a deixar a minha casa no meio de uma manhã
de trabalho para ajudá-la a procurar não o passaporte ou o título de eleitor,
mas a pessoa que havia se desgarrado dela. Encolhi-me na poltrona, antes de
arriscar. “Ninguém te conhece. E você não conhece ninguém”, disse. E minha voz
saiu mais aguda do que eu planejara. “São poucos os que podem nos conhecer, o
resto é o bando que se alimenta e se protege mutuamente, ferindo quem for
preciso para não ter sua posição ameaçada. Você quer ofertar seu corpo
verdadeiro para que o canibalizem?”
Eu também estava confusa. “Há uma
escuridão, e eu sou essa escuridão”,repetia B. “E lá, em algum ponto desse
buraco negro, há uma pessoa que grita, mas ela está presa na nuvem. A conexão
se perdeu, eu me perdi.” Percebi que B, minha amiga mais presente, no presente,
a mais pública, a mais conectada sentia-se incorpórea. Sentia-se uma pessoa sem
pessoa – e também sem corpo.
Quando juntas estudávamos a obra
de Isaac Bábel, eu e B havíamos chorado ao tomarmos conhecimento da lista dos
pertences encontrados no apartamento do escritor, em Moscou. Bábel fora preso
pela polícia de Stálin. Seus manuscritos foram confiscados, seu nome apagado de
enciclopédias, dicionários literários e roteiros de cinema, seus óculos
quebrados, seu corpo torturado e, até ser executado por um pelotão de
fuzilamento, tudo o que ele pedia era: “Deixem-me concluir minha obra”. Os
manuscritos de Bábel desapareceram, e ele será sempre um homem inconcluso –
como todos nós e, de certo modo, mais que todos. Mas o que fez eu e B nos
comovermos para além da brutalidade do regime de Stálin, que executara também
as letras de Bábel,foi descobrir no espólio do escritor“um pato de banho”.
Se a pessoa de Bábel estava em
algum lugar, pensei, era naquele pato de borracha. Sem saber o que fazer,
lançada na claridade pela lucidez excessiva de B, agarrei forte a sua mão.
Agarrei para machucar, para que B sentisse as minhas unhas. Eu sabia que, se a
“pessoa” de nós estava em algum lugar, era naquele toque que nos impedia de
submergir no que o personagem de Tchekhov chamou de “verdades convencionais e
mentiras convencionais”.
Não me parece que B seja a única
a vagar por aí gritando: “Cadê a pessoa?”. Por isso pedi a ela autorização para
contar da sua perda a vocês. B a deu na hora. Mas quando lhe perguntei se
poderia colocar seu nome, ela negou com veemência: “Se você revelar meu nome,
eu perderei a pessoa para sempre. A pessoa está fora do nome”.
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Eliane Brum escreve às segundas-feiras na Revista Época.
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