por Marcos Daniel
O Edifício Távora era um dos
endereços mais tradicionais da cidade. Havia sido o mais luxuoso hotel de uma
grande rede até 1970. Com a falência do grupo, toda a massa falida foi
adquirida à preços módicos por um grupo de empresários gregos. Logo em seguida
a família Távora adquiriu o imóvel, na intenção de transformá-lo em um prédio
comercial. Depois de iniciada a reforma, decidiu-se que apenas os dois
primeiros andares seriam comercias, ficando os treze restantes como
apartamentos residenciais de alto padrão, com apenas dois apartamentos por
andar. O térreo era todo ocupado pela agência de um tradicional banco de câmbio
e ações. Com os anos os apartamentos foram sendo vendidos um a um, restando
algumas poucas unidades, além da cobertura, em nome da família Távora.
Não tinha certeza se deveria
entrar. Passara o último ano planejando e antevivendo aquele momento e agora a
certeza lhe escapava entre os dedos. Ou talvez até tivesse certeza, mas o certo
é que tinha medo das certezas. Certezas são sempre perigosas. Já se atirara
inúmeras vezes na vida nos braços de certezas insofismáveis e dera com a cara
no chão. Mas agora seria tolice retroceder. Viera de longe, no tempo e no
espaço. Já que tinha que fazer aquilo, que fosse rápido e indolor.
Respirou fundo e entrou, sentindo
a boca seca e um frio a lhe percorrer a espinha. Ficou alguns instantes admirando
o mobiliário antigo, madeiras nobres, tapetes orientais e lustres europeus. A luz
do sol de primavera atravessava os dois grandes vitrais que se opunham sobre a
recepção, onde uma moça de uns vinte e poucos anos loura e mal maquiada
esperava por algo que ela jamais saberia o que era. Será que se parece com ela?
Aproximou-se lentamente, dando
tempo para que a moça mal maquiada baixasse a cabeça, na esperança de que ela
desistisse de lhe importunar com o que quer que fosse. O crachá trazia o nome
Lígia, escrito à mão num papel colado sobre o nome do antigo titular do crachá.
- Que pobreza - pensou com desdém.
- Bom dia Lígia, estou à procura
do Doutor Alessandro Távora e sua esposa.
Aprendera com o pai a tratar os
serviçais sempre pelo nome, assim saberiam que você sabe o nome deles, o que
provocaria, em tese, um atendimento melhor. Quase nunca dava certo e dessa vez
não foi diferente.
- O casal esta em viagem -
respondeu a moça sem sequer levantar a cabeça.
Não contava com isso. O misto de
alívio e frustração diante do inesperado causou-lhe um ligeiro torpor,
rapidamente controlado.
- Posso deixar um recado ?
Lígia estendeu-lhe um bloco de
rascunho, ainda de cabeça baixa.
- Tem uma caneta.
Nesse momento Lígia lhe encarou
pela primeira vez, desviando o olhar para a grande bolsa que Vera carregava e
retornando o olhar para seu rosto como a perguntar – Pra que a perua vadia tem uma
bolsa tão grande se não carrega uma porra de uma caneta.
Vera sorriu seu sorriso falso
numero 7, enquanto Lígia lhe estendia uma caneta com o emblema do banco de
câmbio e ações que funcionava no térreo, propriedade da família de Vera. Mas
Lígia jamais saberia disso.
Retirou-se elegantemente até um
dos grandes sofás que ficavam harmonicamente espalhados ao longo do saguão do
edifício. Pensava no que escrever. Não avisou que viria, certa de que o casal
seria contrário à sua visita. Na única ocasião em que ela e o finado marido
ameaçaram aparecer, revelando o motivo da visita, foram advertidos severamente
para desistirem, inclusive sob ameaças. Mas isso foi há mais de 15 anos.
Alessandro e Sara.
Desculpe ter vindo sem avisar. Imagino que
vocês saibam que Marcio morreu ano passado. Imagino também que saibam a
natureza da minha visita. Sei que esse assunto é bastante indigesto e delicado
pra vocês. Mas acreditem, pra mim também não é fácil. Foi muito triste vê-lo
morrer sem que este caso estivesse resolvido. Era muito importante pra ele que
as coisas se acertassem e dei minha palavra de que resolveria isso o mais breve
possível. Espero que possamos fazer isso amigavelmente. Estou hospedada no
Hilton e não pretendo partir antes de resolvermos tudo. Falo em nome de nossa
antiga amizade, e dos bons laços que existem entre nossas famílias.
Att.
Vera Weaтhezbble.
Dobrou o papel e guardou-o na
bolsa. Atravessou o saguão até a cafeteria que ficava no lado oposto ao da
recepção. Ainda estava à meio caminho e a moça de traços latinos já exibia um
sorriso cujo brilho rivalizava com a luz que vazava dos vitrais.
- Bom dia senhora, em que posso
servi-la?
- Um café expresso, por favor.
Enquanto aguardava pensou em como
deixar o bilhete sem que a drogada da Lígia o lesse. Pedir um envelope seria
humilhante, mesmo porque não tinha como lacrá-lo.
Rosa (era o que dizia o crachá)
trouxe o café, acompanhado de torradas integrais e geléia de damasco.
- Você conhece o Dr. Alessandro e
Dona Sara ?
- Sim. Mas eles devem estar
viajando. Geralmente o doutor esta aqui nesse horário, tomando um café enquanto
lê os jornais – respondeu Rosa sorrindo.
Vera considerou deixar o bilhete
com Rosa, enquanto mexia a mistura de café com adoçante.
- Mas Alice está em casa. Chegou
da rua uns 10 minutos antes de abrirmos – completou voltando para dentro do
balcão.
Vera sentiu a vista branquear e
escurecer e voltar a branquear. Pegou calmamente uma torrada, passou a geleia e
mordeu um pedaço praticamente desprezível. Precisava ordenar os pensamentos.
Chamou de volta a atendente.
- O casal ainda mora na cobertura? – perguntou
Vera, estendendo uma nota de um dólar.
- Sim, respondeu Rosa secamente. - Alice mora no terceiro andar, apartamento
31 – completou quando retornou com o troco.
- Pode ficar, respondeu , sem
olhar para a moça.
Vera voltou a sentar-se
elegantemente sobre o sofá de couro. Notou que outro atendente se juntara à
loura mal educada.
- A senhorita Alice está ?
- Sim Senhora, ela a esta
esperando – respondeu o rapaz sem crachá.
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