segunda-feira, 11 de junho de 2012

Os maridos



por Amilcar Bettega

"E lá vão eles, firmes, cumprir o supremo destino de reinaugurar o dia, de pôr outra vez o mundo em funcionamento. Vão varonis, encher de energia o ventre das coisas, construir os fatos, agir sobre o tempo, vão rígidos e convictos, mesmo que o sol, irmão na força de todas as manhãs, hoje pareça ter se atrasado de propósito, deixando os maridos sob esse céu anêmico, de um cinza amarelado e pegajoso. Faz muito calor e vai chover.

Eles vão dentro dos carros, dos ternos e das gravatas. Vão nos ônibus, no metrô, e vão também a pé, muito apressados todos eles, já com manchas de suor nas costas e sob as axilas (os maridos são homens de muitos líquidos). Carregam as pastas, os papéis, os contratos, os relatórios, ou ainda prosaicas sacolinhas de supermercado e marmitas surradas. Lá vão eles nessa manhã abafada de dezembro. Mas vão como se fossem contra o vento gelado de agosto ou sob a luz excessiva de abril. Os maridos vão nessa manhã como em todas as manhãs do mundo. Têm o gosto do café e do sono na boca, talvez do álcool da noite anterior, da comida pesada, de algum sexo às pressas. Lá vão eles, incumbidos da divina missão de fazer as coisas, vão machos, saindo das suas casas como quem sai para a guerra.

Os portões dos edifícios e das garagens os despejam na rua como touros bravios lançados no centro da arena. Mas também são peixes, um cardume em febril trajeto, que vão em fila, lado a lado, ombro a ombro, vão fazer os negócios, vão discutir os preços, vão comprar e vender, os maridos.

E vão também muitas mulheres-marido, vão sérias e rígidas, equilibristas de salto alto, vão orgulhosas da força que as iguala, lá vão elas senhoras de suas conquistas, despejando potência na máquina do dia.

Enquanto isso vem crescendo a manhã, morna e tensa, como se tivesse febre. O céu é baixo e não há nenhuma dúvida que a chuva vai estourar em pouco tempo. Os maridos homens e maridos mulheres já ouviram a previsão no rádio bem cedo ou leram no jornal, bem cedo também. Os maridos leem o jornal de manhã e escutam as notícias no rádio ou conversam com outros maridos para saber as coisas. A chuva vai estourar a manhã em pouco tempo.

Compenetrados, conscientes dos seus músculos e inteligências, os maridos fazem o trabalho e a manhã fica bojuda. Ela cresce em ruído, em nervosismo, e cresce também o calor. Os maridos vão suados, incômodos, mas decididos. Muitos já chegaram aos escritórios e dão ordens e falam ao telefone e fecham negócios. Outros recebem as ordens e as repassam, no feliz exercício da hierarquia. Correm, esses austeros milicianos, despacham, assinam, e sentem, com uma sincera e infantil felicidade, o motor do trabalho ganhando aceleração.

Mas muitos, muitos deles ainda estão a caminho. Estão presos no trânsito ou mesmo nas calçadas, caminhando, correndo, porque a chuva não demora e estamos todos atrasados. Nos semáforos fechados, ao volante, eles limpam o suor da testa, dão uma olhadela na primeira página do jornal que descansa no banco do carona, e arrancam. E param logo em seguida porque o tráfego é lento, um congestionamento — dá no rádio — de oito quilômetros para o trânsito da cidade. Então os maridos sacam seus celulares. E os maridos que vão na rua cobrem a cabeça com suas pastas porque os primeiros pingos da chuva começam a cair.

A chuva desaba e o céu encosta na terra. A manhã vira noite outra vez e os automóveis têm de acender os faróis. Também as luzes da rua se acendem, e olhar contra o poste alto da iluminação é ver a chuva multiplicada dez vezes, talvez a sua verdadeira cifra.

A rua é um rio. Uma água turva, da cor do céu, corre sem direção definida, carreando os detritos que dormiam nas sarjetas, no fundo dos becos, sob a cabeceira das pontes ou agarrados à pele suja do asfalto. Emerge e boia o lixo da cidade por entre os carros, que também são arrastados uns contra os outros e que, soltos assim no movimento das águas, têm a tranquila aparência das coisas mortas. A chuva é cada vez mais forte e reduz o campo de visão a uns poucos metros. Aqueles maridos que estavam nas calçadas agora lutam para se manter na superfície da água, como se a força da chuva sobre suas cabeças os empurrasse para baixo. Uns nadam, outros apenas se debatem, outros são arrastados pela água, e várias pastas abertas vomitam seus papéis na correnteza. Lá vão os papéis, e as pastas atrás deles, com suas bocas abertas numa desesperada e inútil tentativa de resgatar seus valores.

Cresce a água também dentro dos carros, rompendo à força a segurança das calafetagens das portas. Primeiro é uma lâmina líquida, uma língua que lambe o piso dos automóveis, depois vai crescendo e atingindo os bancos de couro, infiltrando-se nos mecanismos delicados dos painéis digitais. Então já passamos do caos. O desespero está nos rostos dos maridos que se debatem tentando livrar-se dos cintos de segurança. Eles socam os vidros mas sabem que não adiantaria abri-los, o que apenas aceleraria a entrada da água. São lógicos os maridos, mesmo no desespero. Lá dentro dos carros os maridos já têm a água na altura do queixo. Suas cabeças encostam no teto e eles são forçados a virar o rosto de lado para tentar buscar com narizes ansiosos a última camada de ar que se espreme contra o teto do automóvel. E quando a água elimina também essa derradeira lâmina de ar, os maridos retornam para o vidro lateral e tremem sob a água, colam seus rostos e suas bocas no vidro, por onde deslizam as borbulhas de ar que eles soltam. E novamente eles têm aspecto de peixes, que morrem em seus próprios aquários. Os braços já estão mortos, pois eles não batem mais nos vidros, apenas nos forçam com a cabeça, e principalmente com a boca, uma boca arroxeada, boca de peixe, grudada no vidro.

Muitos dos maridos apanhados na rua já boiam de bruços na correnteza, entre sacos de lixo, verduras podres e montes de fezes que se levantaram dos valões. Os mais fortes ainda tentam nadar, mas seus braços são quase inúteis contra o lodo, o capim e pedaços de panos que se enroscam neles.

Alguns que estavam dentro dos carros-aquário vão conseguindo sair, também na última das suas forças, para morrer na superfície. Ainda que torrencial, a chuva já não aumenta. Martela de forma constante, água sobre água, porque a cidade já não existe. Tudo é um imenso rio marrom e a cidade ficou embaixo. Acima, está o lixo, a água escura de lama, os corpos emborcados dos maridos-peixe.
***

É só depois que a chuva arrefece. É só depois que ela se transforma nessa lenta garoa. É quando se pode ver melhor.

E varrendo com os olhos toda a superfície da água, não se percebe um só topo de edifício ou torre de televisão, nada a não ser a água barrenta, o lixo e os corpos dos maridos boiando, já um pouco inchados. O céu vai lentamente clareando outra vez, ainda opaco, cinza, como que refletindo a tonalidade suja da água, mas um céu novo.

E ao longe, como que saindo de trás da linha do horizonte, uma pequena mancha vem crescendo.

Vem se aproximando com lentidão excessiva, entre o lixo e os corpos. É um bote, um fragilíssimo bote de madeira que seu condutor traz com remadas esparsas. Vem de pé, uma figura magra, que passa com dificuldade o remo de um lado para o outro a fim de corrigir a rota.

Tem um lenço negro na cabeça e é uma mulher. Ela tem o olhar concentrado em cada corpo que passa roçando o casco do bote. Às vezes segura um deles pela camisa, vira-se com dificuldade e quase desequilibra-se, puxa pelo braço o corpo que a correnteza vai carregando, puxa-o para bem próximo do barco, segura-o pelos cabelos e ergue seu rosto. Então, com um suspiro, devolve o corpo à correnteza e fica olhando ele se afastar, às vezes lento, às vezes girando em torno de um eixo imaginário que lhe cruza o umbigo, às vezes sofrendo os ligeiros movimentos e acelerações de um redemoinho. Ela olha o corpo se afastar e logo retoma sua trajetória. É assim que ela vem, vem no seu barco, passa por inúmeros corpos, detém-se num e noutro, e vem.

Lá vem a mulher, vem sóbria e triste, vem para buscar alguma coisa que está perdida. E que ela busca em cada corpo que passa boiando ao lado do seu bote. De repente ela se agita no barco, enxerga a alguns metros um corpo que lhe é familiar demais. Aqueles braços, aquelas costas, aqueles cabelos espalhados em torno da cabeça como uma medusa negra que se move ou se deixa mover no músculo das águas. Ela rema com desespero e quase vira o barco na ânsia de chegar até ele. Não pode deixar passar aquele corpo. Rema num esforço máximo até que o alcança e consegue puxá-lo pelo tornozelo, quando a correnteza já ia levando-o para sempre. Ela o traz para o lado do barco e vira o corpo e vê que, sim, é seu marido. Sem nenhum instante de raciocínio ou mesmo de emoção, puro instinto, a mulher segura-o pelas axilas e começa a puxá-lo para dentro do barco. É uma operação difícil e perigosa, e que demora bastante. O corpo inchado pesa mais do que o normalmente pesado corpo do marido e ela é obrigada a descer na água para empurrar suas pernas para cima. Depois volta a subir no barco, desvira o corpo do seu marido e olha para os lábios roxos, a boca escura, de onde pende um ramo de capim embarrado. Ela limpa seus cabelos do excesso de lama, livra-o da camisa que é um lodo só e vê que ele tem um ferimento na altura do baço, um rasgo escuro que, quase imperceptivelmente, se abre e se fecha.

Ela beija sua boca e volta a apanhar o remo. Põe-se de pé na popa do barco. Que lentamente vai."

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Publicado originalmente no blog da Amandha!
Sobre a autor: Amilcar Bettega é escritor, autor de "O Voo da Trapezista". 
O conto "Os Maridos" ainda não tem data para publicação em livro.

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