por Amilcar Bettega
"E lá vão eles, firmes, cumprir o supremo destino de
reinaugurar o dia, de pôr outra vez o mundo em funcionamento. Vão varonis,
encher de energia o ventre das coisas, construir os fatos, agir sobre o tempo,
vão rígidos e convictos, mesmo que o sol, irmão na força de todas as manhãs,
hoje pareça ter se atrasado de propósito, deixando os maridos sob esse céu
anêmico, de um cinza amarelado e pegajoso. Faz muito calor e vai chover.
Eles vão dentro dos carros, dos ternos e das gravatas. Vão
nos ônibus, no metrô, e vão também a pé, muito apressados todos eles, já com
manchas de suor nas costas e sob as axilas (os maridos são homens de muitos
líquidos). Carregam as pastas, os papéis, os contratos, os relatórios, ou ainda
prosaicas sacolinhas de supermercado e marmitas surradas. Lá vão eles nessa
manhã abafada de dezembro. Mas vão como se fossem contra o vento gelado de
agosto ou sob a luz excessiva de abril. Os maridos vão nessa manhã como em
todas as manhãs do mundo. Têm o gosto do café e do sono na boca, talvez do
álcool da noite anterior, da comida pesada, de algum sexo às pressas. Lá vão
eles, incumbidos da divina missão de fazer as coisas, vão machos, saindo das
suas casas como quem sai para a guerra.
Os portões dos edifícios e das garagens os despejam na rua
como touros bravios lançados no centro da arena. Mas também são peixes, um
cardume em febril trajeto, que vão em fila, lado a lado, ombro a ombro, vão
fazer os negócios, vão discutir os preços, vão comprar e vender, os maridos.
E vão também muitas mulheres-marido, vão sérias e rígidas,
equilibristas de salto alto, vão orgulhosas da força que as iguala, lá vão elas
senhoras de suas conquistas, despejando potência na máquina do dia.
Enquanto isso vem crescendo a manhã, morna e tensa, como se
tivesse febre. O céu é baixo e não há nenhuma dúvida que a chuva vai estourar
em pouco tempo. Os maridos homens e maridos mulheres já ouviram a previsão no
rádio bem cedo ou leram no jornal, bem cedo também. Os maridos leem o jornal de
manhã e escutam as notícias no rádio ou conversam com outros maridos para saber
as coisas. A chuva vai estourar a manhã em pouco tempo.
Compenetrados, conscientes dos seus músculos e
inteligências, os maridos fazem o trabalho e a manhã fica bojuda. Ela cresce em
ruído, em nervosismo, e cresce também o calor. Os maridos vão suados,
incômodos, mas decididos. Muitos já chegaram aos escritórios e dão ordens e
falam ao telefone e fecham negócios. Outros recebem as ordens e as repassam, no
feliz exercício da hierarquia. Correm, esses austeros milicianos, despacham,
assinam, e sentem, com uma sincera e infantil felicidade, o motor do trabalho
ganhando aceleração.
Mas muitos, muitos deles ainda estão a caminho. Estão presos
no trânsito ou mesmo nas calçadas, caminhando, correndo, porque a chuva não
demora e estamos todos atrasados. Nos semáforos fechados, ao volante, eles
limpam o suor da testa, dão uma olhadela na primeira página do jornal que
descansa no banco do carona, e arrancam. E param logo em seguida porque o
tráfego é lento, um congestionamento — dá no rádio — de oito quilômetros para o
trânsito da cidade. Então os maridos sacam seus celulares. E os maridos que vão
na rua cobrem a cabeça com suas pastas porque os primeiros pingos da chuva
começam a cair.
A chuva desaba e o céu encosta na terra. A manhã vira noite
outra vez e os automóveis têm de acender os faróis. Também as luzes da rua se
acendem, e olhar contra o poste alto da iluminação é ver a chuva multiplicada
dez vezes, talvez a sua verdadeira cifra.
A rua é um rio. Uma água turva, da cor do céu, corre sem
direção definida, carreando os detritos que dormiam nas sarjetas, no fundo dos
becos, sob a cabeceira das pontes ou agarrados à pele suja do asfalto. Emerge e
boia o lixo da cidade por entre os carros, que também são arrastados uns contra
os outros e que, soltos assim no movimento das águas, têm a tranquila aparência
das coisas mortas. A chuva é cada vez mais forte e reduz o campo de visão a uns
poucos metros. Aqueles maridos que estavam nas calçadas agora lutam para se
manter na superfície da água, como se a força da chuva sobre suas cabeças os
empurrasse para baixo. Uns nadam, outros apenas se debatem, outros são
arrastados pela água, e várias pastas abertas vomitam seus papéis na
correnteza. Lá vão os papéis, e as pastas atrás deles, com suas bocas abertas
numa desesperada e inútil tentativa de resgatar seus valores.
Cresce a água também dentro dos carros, rompendo à força a
segurança das calafetagens das portas. Primeiro é uma lâmina líquida, uma
língua que lambe o piso dos automóveis, depois vai crescendo e atingindo os
bancos de couro, infiltrando-se nos mecanismos delicados dos painéis digitais.
Então já passamos do caos. O desespero está nos rostos dos maridos que se
debatem tentando livrar-se dos cintos de segurança. Eles socam os vidros mas
sabem que não adiantaria abri-los, o que apenas aceleraria a entrada da água.
São lógicos os maridos, mesmo no desespero. Lá dentro dos carros os maridos já
têm a água na altura do queixo. Suas cabeças encostam no teto e eles são
forçados a virar o rosto de lado para tentar buscar com narizes ansiosos a
última camada de ar que se espreme contra o teto do automóvel. E quando a água
elimina também essa derradeira lâmina de ar, os maridos retornam para o vidro
lateral e tremem sob a água, colam seus rostos e suas bocas no vidro, por onde
deslizam as borbulhas de ar que eles soltam. E novamente eles têm aspecto de
peixes, que morrem em seus próprios aquários. Os braços já estão mortos, pois
eles não batem mais nos vidros, apenas nos forçam com a cabeça, e
principalmente com a boca, uma boca arroxeada, boca de peixe, grudada no vidro.
Muitos dos maridos apanhados na rua já boiam de bruços na
correnteza, entre sacos de lixo, verduras podres e montes de fezes que se
levantaram dos valões. Os mais fortes ainda tentam nadar, mas seus braços são
quase inúteis contra o lodo, o capim e pedaços de panos que se enroscam neles.
Alguns que estavam dentro dos carros-aquário vão conseguindo
sair, também na última das suas forças, para morrer na superfície. Ainda que
torrencial, a chuva já não aumenta. Martela de forma constante, água sobre
água, porque a cidade já não existe. Tudo é um imenso rio marrom e a cidade
ficou embaixo. Acima, está o lixo, a água escura de lama, os corpos emborcados
dos maridos-peixe.
***
É só depois que a chuva arrefece. É só depois que ela se
transforma nessa lenta garoa. É quando se pode ver melhor.
E varrendo com os olhos toda a superfície da água, não se
percebe um só topo de edifício ou torre de televisão, nada a não ser a água
barrenta, o lixo e os corpos dos maridos boiando, já um pouco inchados. O céu
vai lentamente clareando outra vez, ainda opaco, cinza, como que refletindo a
tonalidade suja da água, mas um céu novo.
E ao longe, como que saindo de trás da linha do horizonte,
uma pequena mancha vem crescendo.
Vem se aproximando com lentidão excessiva, entre o lixo e os
corpos. É um bote, um fragilíssimo bote de madeira que seu condutor traz com
remadas esparsas. Vem de pé, uma figura magra, que passa com dificuldade o remo
de um lado para o outro a fim de corrigir a rota.
Tem um lenço negro na cabeça e é uma mulher. Ela tem o olhar
concentrado em cada corpo que passa roçando o casco do bote. Às vezes segura um
deles pela camisa, vira-se com dificuldade e quase desequilibra-se, puxa pelo
braço o corpo que a correnteza vai carregando, puxa-o para bem próximo do
barco, segura-o pelos cabelos e ergue seu rosto. Então, com um suspiro, devolve
o corpo à correnteza e fica olhando ele se afastar, às vezes lento, às vezes
girando em torno de um eixo imaginário que lhe cruza o umbigo, às vezes
sofrendo os ligeiros movimentos e acelerações de um redemoinho. Ela olha o
corpo se afastar e logo retoma sua trajetória. É assim que ela vem, vem no seu
barco, passa por inúmeros corpos, detém-se num e noutro, e vem.
Lá vem a mulher, vem sóbria e triste, vem para buscar alguma
coisa que está perdida. E que ela busca em cada corpo que passa boiando ao lado
do seu bote. De repente ela se agita no barco, enxerga a alguns metros um corpo
que lhe é familiar demais. Aqueles braços, aquelas costas, aqueles cabelos
espalhados em torno da cabeça como uma medusa negra que se move ou se deixa
mover no músculo das águas. Ela rema com desespero e quase vira o barco na
ânsia de chegar até ele. Não pode deixar passar aquele corpo. Rema num esforço
máximo até que o alcança e consegue puxá-lo pelo tornozelo, quando a correnteza
já ia levando-o para sempre. Ela o traz para o lado do barco e vira o corpo e
vê que, sim, é seu marido. Sem nenhum instante de raciocínio ou mesmo de
emoção, puro instinto, a mulher segura-o pelas axilas e começa a puxá-lo para
dentro do barco. É uma operação difícil e perigosa, e que demora bastante. O
corpo inchado pesa mais do que o normalmente pesado corpo do marido e ela é
obrigada a descer na água para empurrar suas pernas para cima. Depois volta a
subir no barco, desvira o corpo do seu marido e olha para os lábios roxos, a
boca escura, de onde pende um ramo de capim embarrado. Ela limpa seus cabelos
do excesso de lama, livra-o da camisa que é um lodo só e vê que ele tem um
ferimento na altura do baço, um rasgo escuro que, quase imperceptivelmente, se
abre e se fecha.
Ela beija sua boca e volta a apanhar o remo. Põe-se de pé na
popa do barco. Que lentamente vai."
Publicado originalmente no blog da Amandha!
Sobre a autor: Amilcar Bettega é escritor, autor de "O Voo da Trapezista".
O
conto "Os Maridos" ainda não tem data para publicação em livro.
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