sábado, 24 de novembro de 2012

De qual ponto você olha a vida ?

por Raquel Carvalho

Tem gente que passa a vida de onde está olhando adiante. “Quando terminar isso, correrei atrás do meu sonho”. “Quando tal época chegar, farei o que realmente desejo”. “Quando tiver tempo livre, realizarei o projeto da minha vida.” Estou falando daqueles que vivem postergando o que acham que os fará felizes, com a desculpa de que “ainda não chegou a hora”. No futuro, esse desconhecido e incerto, está a prometida felicidade. Hoje é o lugar onde estão, com muita tolerância e sem muita presença, já que bom mesmo será o amanhã.

Há um outro tipo que passa os dias olhando para trás. No ensino médio têm saudade da primeira escola; na faculdade suspiram pelo cursinho; quando entram no mercado de trabalho morrem de vontade de “voltar apenas estudar”. Casados, suspiram pela solteirice. Divorciados, sentem faltam imensa da proteção da relação a dois. Como a professorinha de Ataulfo Alves, entoam o mantra “eu era feliz e não sabia” todos os dias e para qualquer coisa. Hoje é somente um espaço de saudosismo, lamentação e ausência. A única alegria é do que passou e não voltará jamais.

Não vale esquecer daqueles que se agarram ao hoje como a única alternativa. Alguns vivem sem passado. Ignoram o que já realizaram e começam cada manhã como se fosse uma batalha iniciada do zero; sem ganhos pregressos, sem habilidades já construídas, lutando pelo pão de cada dia com uma força descomunal, com os tanques na rua, como se toda a existência dependesse apenas daquele enorme esforço. Vivem exaustos, por óbvio. Há quem, preso ao hoje, não tem perspectiva de futuro. Esses precisam usufruir de todo o prazer agora, visto que não haverá amanhã. Querem todas as alternativas, para si, já: o melhor trabalho, todas as comidas, as festas mais animadas, todos os afetos simultâneos à disposição… Hedonistas, gulosos, insaciáveis. Passar os dias assim é igualmente cansativo. Por fim, aqueles que, presos ao hoje, ignoram passado e simultaneamente não vislumbram o futuro são os mais perigosos: para si mesmos e para o mundo. É verdadeiramente arriscado não enxergar o fio da história, embora a maioria ignore isso.

Penso que personagens tão bem caracterizados não são comuns. Caricaturas boas para textos literários, com suas exclusividades, mas raros na vida real, convenhamos. No fundo, todos temos um pouco de saudade do ontem, um punhado de sonhos para amanhã e encaramos o presente com a energia e o prazer possíveis. Às vezes há mais equilíbrio entre as variáveis, noutras menos e a vida segue com suas alternâncias razoáveis. Não consigo deixar de perceber, contudo, que em algumas fases da vida somos mais passado, em outras só futuro e de vez em quando conseguimos estar nesse lugar estranho que é o presente, aquele que, quando percebemos com o cérebro, já se foi há 3 segundos.

Quando estamos na adolescência (e integramos a parcela da sociedade cujos pais conseguem assegurar o mínimo da existência), existe hoje e, no máximo, a próxima festa da turma. A vida é longa, há dezenas de milhares de dias pela frente, nada justifica tanta preocupação como os educadores querem convencer, principalmente se considerarmos a avalanche de alegrias, sofrimentos, felicidade e dores que o agora propicia. Qualquer besteira pode ser superada. Praticamente tudo está por vir, erros abissais têm plena condição de serem corrigidos, praticamente nada tem consequências definitivas e nos tornamos super-heróis frágeis que erramos (muito), acertamos (pouco), amparados pela inexperiência. Desse ponto da vida, tudo está à frente e os olhos, o coração e a alma estão grudados no hoje. Intensamente. Exclusivamente. Exageradamente.

Na terceira idade, também existe o hoje e, no máximo, o amanhã. A vida é curta, você já viveu dezenas de milhares de dias que ficaram para trás, nada justifica tanta preocupação como os filhos e netos querem convencê-lo, principalmente se considerar as emoções suaves, sem grandes desesperos, dramas ou excessos, que o agora propicia. Nada parece ser besteira. Os maiores erros já foram cometidos, foi possível sobreviver a todos e se reinventar a cada um deles. Os acertos foram em bom número, principalmente depois de um determinado momento da vida adulta. Já deu para descobrir que nada é definitivo, nem quem você desconfia que seja. Continua errando, continua acertando, amparado por escolhas que lhe parecem fazer sentido a cada momento. Desse ponto da vida, melhor que os olhos não se voltem demais ao passado, nem se estendam demais para o futuro. Uma certa coerência atual está de bom tamanho e costuma ser suficiente para alguns momentos felizes.



Cá de mim, aproximo do que chamam “o meio da vida”. Não é mais possível arriscar alto e pagar para ver, sem condições efetivas de arcar com a fatura que cada escolha traz, mais à frente. Erros graves têm consequências sérias e duradouras. Qualquer um se reinventa até com certa facilidade de uma bobagem feita aos 20 anos; já aos 40, a coisa muda de figura. É preciso prestar atenção na máxima “plantar é escolha, colher não”; a semeadura feita por volta das quatro décadas de vida define em boa proporção como serão as décadas seguintes, uma parte bastante nobre da existência. Não dá mais para seguir fazendo o que não faz sentido, nem sendo o que não se é. Aos 40, já sabemos o que não queremos e desconfiamos do que de fato desejamos. Conhecemos um tanto bom das nossas fraquezas, habilidades, virtudes e dificuldades. Paramos de brigar com quem vamos nos tornando e passamos a nos administrar, com entrega. Descobrimos que a responsabilidade por dias felizes está em nossas mãos e começamos a inventar uma rotina de manter os pratos girando e dar conta do principal: a própria vida. Ainda não é possível dizer, com tranquilidade: “não dou conta”. Mesmo porque ainda temos força e um bocado de coragem. Escolhemos dar conta de múltiplas coisas, sonhar vários sonhos, cuidar de muitos queridos e correr atrás de importantes projetos. A decisão de fazê-lo não é um comportamento irresponsável de quem não tem noção. É mais uma habilidade com que ainda contamos fisicamente e que já adquirimos emocionalmente. Desconfio que seja bom aproveitar. Porque, como tudo na vida, vai passar. Estaremos, daqui há um tempo, mais livres para, sentindo, dizer simplesmente “ah, isso não, não me interessa…” ou “disso não sou capaz”, tomando um chá, em casa, em um fim de tarde qualquer. Deve ser bom experimentar essa sensação de pouca urgência e de menos demandas relevantes, incorporando os limites naturais que surgem e usufruindo a liberdade do vazio. Mas hoje não. Ainda não. Muito interessa. Muito desejamos. Muito realizamos. Muito sentimos. Muito fazemos. Muito sonhamos. Um bom ponto para se olhar e se viver a vida.

Meu conselho? Abram os olhos. E vejam. Olhar sem ver é coisa muito triste. Enxergar, olhando, a cada instante é trem bonito demais para se desperdiçar nesse mundão de meu Deus…
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A advogada mineira
Raquel Carvalho
escreve na coluna 7x7
da Revista Época.

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