No livro “Os enamoramentos”, de Javier Marías (Companhia das
Letras, 2012), uma das personagens diz:
- Os filhos dão muita
alegria e tudo o mais que se costuma dizer, mas também, e isso não se costuma
dizer, dão muita pena, permanentemente, o que não creio que mude nem quando
forem maiores. Você vê a perplexidade deles diante das coisas, e isso dá pena. Vê
a boa vontade deles, quando estão a fim de ajudar e acrescentar algo próprio
mas não podem, e isso também dá pena. Dá pena a seriedade deles e dão pena suas
brincadeiras elementares e suas mentiras transparentes, dão pena suas
desilusões e também suas ilusões, suas expectativas e suas pequenas decepções,
sua ingenuidade, sua incompreensão, suas perguntas tão lógicas e até a
ocasional má intenção que possam ter. Dá pena pensar quanto lhes falta aprender
e no longuíssimo percurso que têm pela frente e que ninguém pode fazer por
eles, apesar de estarmos há séculos fazendo e não vejamos a necessidade de que
todos os que nascem devam começar outra vez desde o início. Que sentido tem
cada um passar pelos mesmos desgostos e descobertas, mais ou menos eternamente?
O fragmento é parte das quatro páginas mais belas deste
livro traduzido para o português por Eduardo Brandão. Se você for ler “Os
Enamoramentos”, talvez encontre outros momentos de que goste mais. Para mim, o
que acontece da página 68 a 71 é, neste livro, o ápice da escritura tão
singular de Javier Marías. Não se trata de uma obra sobre o sentimento dos pais
diante dos filhos, embora este também seja um “enamoramento”, mas esse pequeno
trecho me capturou porque trata de algo que fala aos pais e às mães. E que
poucas vezes foi tão bem dito.
Lembro-me do momento exato em que olhei para a minha filha e
senti essa dor, que era a dor que eu achava que pudesse ser a dela ou que tinha
a certeza de que um dia seria a dela. Tive minha filha aos 15 anos, o que não
me deu tempo de esquecer das dores da infância ou da perplexidade da infância,
como pode acontecer com aqueles que se tornam pais em idades consideradas mais
recomendáveis. Eu me lembrava tanto da dor quanto da perplexidade, e aos 15
anos ainda não tinha feito o luto de nenhuma das duas.
Minha filha tinha uns três ou quatro anos e estava sentada
no chão tentando brincar. Eu via o seu esforço e via o seu fracasso. Ou talvez
apenas estivesse projetando nela o que sabia que seria seu embate mais ou menos
eterno. Mas creio que não, acredito que já era angústia o que havia no seu
rostinho redondo, já era perplexidade diante da aridez de alguns dias.
Lembro-me de que, naquele momento, as lágrimas pingaram dos meus olhos, como de
uma torneira mal fechada. Eu soube ali que jamais poderia tapar aquele buraco,
que teria de testemunhar para sempre aquela luta íntima na qual cada um de nós
está só. Sempre só. Eu assistia a ela desde já, tão pequena, tão frágil, tão
confiante no meu poder ilusório, debatendo-se com a vida. E para sempre diante
dela eu pingaria como uma torneira mal fechada. Era um momento silencioso entre
nós – e as cartas já estavam dadas muito antes de nós.
Penso que todos os pais que se tornaram pais na modernidade
sentem isso – consciente ou inconscientemente. E talvez tornar-se pai e
tornar-se mãe se dá também na escolha do que fazer com esse sentimento.
Tornar-se pai e mãe porque ser pai e mãe não é algo dado, algo que acontece a
partir de um ato biológico, sempre mais explícito para as mulheres do que para
os homens. Tampouco basta estar no lugar de pai e de mãe, para além dos laços
biológicos. É preciso efetivamente ocupar esse lugar – tornar-se pai e mãe é um
processo que não está nem dado nem garantido, exige um contínuo movimento de
vir a ser, raramente fácil ou simples.
É conhecida a dificuldade atual de exercer a função paterna
e a função materna, porque é mesmo muito mais difícil ocupar um lugar em um
mundo movediço, no qual a tradição já não determina o que devemos fazer acima
de qualquer questionamento. E aqui não há nenhuma nostalgia das amarras da
tradição, embora ela tenha o seu papel, apenas a constatação de que é
previsível que nos percamos quando a pergunta de quem somos deixa de ter uma
resposta óbvia. Embora tantos pais busquem nos infindáveis manuais as respostas
que já não há tradição para dar, talvez esteja na literatura não as respostas,
mas a complexidade das perguntas. Por paradoxal que pareça, me parece que tudo
fica mais claro quando se complica.
É pelo consumo – e aí possivelmente nunca antes como agora –
que se tenta tapar esse buraco aberto no peito dos nossos filhos. Um objeto
seguido de outro objeto, a ilusão de que algo foi preenchido com duração cada
vez mais curta, o desejo pelo produto seguinte cada vez mais imperativo, a
frustração sempre abissal entre um e outro. Com alguma imaginação, é possível
enxergar um filme de zumbis nas cenas de shopping, pequenos arrastando grandes
por corredores iluminados, em busca não de cabeças humanas, mas de mercadorias
para triturar com dentes que não estão na boca.
Mas não protegemos nossos filhos deste vazio, não há como
protegê-los daquilo que é uma ausência que nos completa. Penso que este é o
momento crucial da maternidade e da paternidade. Cada um de nós, que se sabe
faltante, diante da falta que grita no filho. Quando me vi diante desse abismo,
como a personagem de “Enamoramentos”, ela num momento muito diverso e muito
mais limite do que o meu, lembro-me de me sentir envolta em melancolia. Eu
soube ali, naquele instante prosaico em que minha pequena filha procurava por
algo que talvez não pudesse ser encontrado em nenhum lugar além dela mesma, que
eu haveria de conviver com uma falência dali em diante. Minha melancolia não se
devia às dificuldades de uma maternidade precoce – mas à certeza de que proteger
minha filha era uma missão desde sempre fracassada. E eu sabia porque eu
lembrava – e esta talvez seja uma duvidosa vantagem de ser mãe adolescente.
Em outro livro, “Noites Azuis” (Nova Fronteira, 2012), este
autobiográfico, Joan Didion descreve lindamente essa condição que só se
tornaria clara para ela depois da morte da filha. Ao folhear um diário de
Quintana, Joan descobriu que o medo da menina era “cair no vazio”. Em vez de
aceitar este medo, conectar-se com ele, escutá-lo, a mãe escritora se pôs a
corrigir a gramática. Impotente, mas sem aceitar a impotência, mesmo depois da
tragédia, ela eliminou furiosamente as vírgulas em lugar errado no texto da
adolescente. Quintana já tinha partido, mas ainda era tudo o que a mãe se
sentia capaz de fazer diante do pavor da filha de “cair no vazio”.
Esta mesma menina, muito antes, aos 5 anos, havia ligado
para a clínica psiquiátrica mais famosa da região onde a família vivia para
fazer uma pergunta devastadora: “O que devo fazer se estiver enlouquecendo”?
Durante muitos anos Joan não conseguia compreender por que a filha temia que
ela não pudesse protegê-la. Até entender que a pergunta estava errada. A
pergunta correta era: “Como ela podia sequer imaginar que algum dia eu poderia
tomar conta dela?”
Ao olhar para minha própria filha naquele momento em que eu
sabia que a máquina do mundo se abria diante dela para mostrar seu enorme
estômago vazio, lembro-me de que, por um momento, pensei em alcançar talvez um
outro brinquedo ou lhe oferecer um chocolate (nos anos 80 ainda era possível
ser considerada uma boa mãe mesmo dando doces a uma criança pequena, e não uma
serial killer nutricional). Mas meu pensamento não virou gesto. Eu sabia que
tudo o que eu podia fazer era me manter em silêncio. Que ser mãe, naquele
momento, era ser capaz de vê-la debater-se com o vazio, testemunhar o início de
seu longo embate vida adentro. E acho que ali, como deve acontecer com os pais
e mães que percebem esse momento exato, uma fissura nova se abriu em mim. Esta
que para sempre me faria pingar como uma torneira mal fechada.
“Que sentido tem cada um passar pelos mesmos desgostos e
descobertas, mais ou menos eternamente?”, pergunta a personagem de
“Enamoramentos”, diante da fragilidade dos filhos que, naquele momento, por uma
circunstância trágica, lhe era insuportável. E a resposta talvez seja a de que
não exista sentido. E exatamente por não existir, só podemos mostrar aos nossos
filhos, porque isso é algo que se mostra, não que se diz, que a tarefa de uma
vida humana, desde sempre e para sempre, é criar sentido onde não há nenhum.
Inventar uma vida é a tarefa que faz de todos nós ficcionistas. E, em geral,
uma vida que faz sentido é aquela em que os sentidos são construídos para serem
perdidos mais adiante e recriados mais uma vez e sempre outra vez. É o vazio,
afinal, que nos faz inventar uma vida humana – e não morrer antes da morte.
É o que fazemos como pais neste momento em que um filho
descobre o vazio, um momento mais importante do que a primeira palavra ou o
primeiro passo ou o primeiro dente, que também nos torna pais. É preciso
aguentar. Saber aguentar e escutar a dor de um filho, sem tentar calar com
coisas o que não pode ser calado com coisa alguma, é um ato profundo de amor.
Um momento sem palavras em que nosso silêncio diz apenas que a tarefa de criar
uma vida que faça sentido é dele, pessoal e intransferível. E tudo o que
poderemos fazer é estar mais ou menos por perto, ainda que nada possamos fazer.
E um dia, talvez, receber uma carta/email na qual está
escrito: “Mãe: o que eu sempre vi em você era uma pessoa que não desistia do
próprio desejo. E que nunca deixou a vida matar a vida”.
Afinal, o que legamos a um filho é o nosso movimento em
busca de sentido. E este não pode ser um arrastar-se de zumbi.
__________________________________________________
Eliane Brum,
jornalista, escritora
e documentarista,
escreve às segundas-feiras
na Revista Época.
Nenhum comentário:
Postar um comentário