quinta-feira, 27 de dezembro de 2012

Felicidade


"Nós de 74 não temos mais muita margem de erro. 
Mas tenho certeza de que seremos felizes ainda, 
tanta certeza que dá até um medo sabe? 
Tô tão desacostumado com isso de ser feliz 
que nem sei como vai ser. 
Como é que faz na hora que a felicidade chegar ? 
O que devo servir ? Sobre o que devemos conversar ? 
Não somos íntimos entende !? 
Ela vai se achegando sem pedir licença 
e entrando e se acomodando, 
folgando e abrindo a geladeira ? 
Ou é toda cerimoniosa e frescurentinha, 
cheia de dedos e dada a pruridos ? 
Quem sabe !?"

segunda-feira, 17 de dezembro de 2012

Sugestão


por Thiago de Mello


Antes que venham ventos e te levem 
do peito o amor — este tão belo amor, 
que deu grandeza e graça à tua vida —, 
faze dele, agora, enquanto é tempo, 
uma cidade eterna — e nela habita. 

Uma cidade, sim. Edificada 
nas nuvens, não — no chão por onde vais, 
e alicerçada, fundo, nos teus dias, 
de jeito assim que dentro dela caiba 
o mundo inteiro: as árvores, as crianças, 
o mar e o sol, a noite e os passarinhos, 
e sobretudo caibas tu, inteiro: 
o que te suja, o que te transfigura, 
teus pecados mortais, tuas bravuras, 
tudo afinal o que te faz viver 
e mais o tudo que, vivendo, fazes. 

Ventos do mundo sopram; quando sopram, 
ai, vão varrendo, vão, vão carregando 
e desfazendo tudo o que de humano 
existe erguido e porventura grande, 
mas frágil, mas finito como as dores, 
porque ainda não ficando — qual bandeira 
feita de sangue, sonho, barro e cântico — 
no próprio coração da eternidade. 
Pois de cântico e barro, sonho e sangue, 
faze de teu amor uma cidade, 
agora, enquanto é tempo. 

Uma cidade 
onde possas cantar quando o teu peito 
parecer, a ti mesmo, ermo de cânticos; 
onde posssas brincar sempre que as praças 
que percorrias, dono de inocências, 
já se mostrarem murchas, de gangorras 
recobertas de musgo, ou quando as relvas 
da vida, outrora suaves a teus pés, 
brandas e verdes já não se vergarem 
à brisa das manhãs. 

Uma cidade 
onde possas achar, rútila e doce, 
a aurora que na treva dissipaste; 
onde possas andar como uma criança 
indiferente a rumos: os caminhos, 
gêmeos todos ali, te levarão 
a uma aventura só — macia, mansa — 
e hás de ser sempre um homem caminhando 
ao encontro da amada, a já bem-vinda 
mas, porque amada, segue a cada instante 
chegando — como noiva para as bodas. 

Dono do amor, és servo. Pois é dele 
que o teu destino flui, doce de mando: 
A menos que este amor, conquanto grande, 
seja incompleto. Falte-lhe talvez 
um espaço, em teu chão, para cravar 
os fundos alicerces da cidade. 

Ai de um amor assim, vergado ao vínculo 
de tão amargo fado: o de albatroz 
nascido para inaugurar caminhos 
no campo azul do céu e que, entretanto, 
no momento de alçar-se para a viagem, 
descobre, com terror, que não tem asas. 

Ai de um pássaro assim, tão malfadado 
a dissipar no campo exíguo e escuro 
onde residem répteis: o que trouxe 
no bico e na alma — para dar ao céu. 

É tempo. Faze 
tua cidade eterna, e nela habita: 
antes que venham ventos, e te levem 
do peito o amor — este tão belo amor 
que dá grandeza e graça à tua vida.

domingo, 16 de dezembro de 2012

domingo, 9 de dezembro de 2012

sofreguidão


















Mas logo eu, que cheguei por aqui agora. 
Que não entendo nada dessas coisas 
e de tudo o que há pra se entender 
ou pra não se entender por aqui. 

Eu que venho com a pressa de quem já chega 
meio que de partida para outro lugar 
que nunca é aqui e nem era lá. 

Eu que não sei muito bem 
porque vim e nem porque estava 
e nem porque vou pra onde. 

Eu que não quero mais o que eu nunca fui, 
que temo o que eu nunca serei e que desconfio 
dessa cara amassada que talvez seja o que eu sou 
ou não e que se desamassa num sorriso triste 
enquanto eu passo a camisa do uniforme 
em cada manhã sonolenta e triste. 
E um sorriso, mesmo que triste, 
ainda é um sorriso.

Eu que trazia tudo sempre confusamente 
bem resolvido, as manchas muito limpas, 
cada bolor e ferida sempre em seu devido lugar errado.

Agora vejo que terei que me reconstruir 
do que sobrou desse que era sem nunca ter sido, 
desse que se assentava seguro e confortável 
à sombra daquilo que um dia talvez, quem sabe, 
viria a ser se tudo desse certo e nada desse errado, 
o que de fato jamais aconteceu.

- marcos daniel -



sábado, 8 de dezembro de 2012

A dor dos filhos



No livro “Os enamoramentos”, de Javier Marías (Companhia das Letras, 2012), uma das personagens diz:

 - Os filhos dão muita alegria e tudo o mais que se costuma dizer, mas também, e isso não se costuma dizer, dão muita pena, permanentemente, o que não creio que mude nem quando forem maiores. Você vê a perplexidade deles diante das coisas, e isso dá pena. Vê a boa vontade deles, quando estão a fim de ajudar e acrescentar algo próprio mas não podem, e isso também dá pena. Dá pena a seriedade deles e dão pena suas brincadeiras elementares e suas mentiras transparentes, dão pena suas desilusões e também suas ilusões, suas expectativas e suas pequenas decepções, sua ingenuidade, sua incompreensão, suas perguntas tão lógicas e até a ocasional má intenção que possam ter. Dá pena pensar quanto lhes falta aprender e no longuíssimo percurso que têm pela frente e que ninguém pode fazer por eles, apesar de estarmos há séculos fazendo e não vejamos a necessidade de que todos os que nascem devam começar outra vez desde o início. Que sentido tem cada um passar pelos mesmos desgostos e descobertas, mais ou menos eternamente? 

O fragmento é parte das quatro páginas mais belas deste livro traduzido para o português por Eduardo Brandão. Se você for ler “Os Enamoramentos”, talvez encontre outros momentos de que goste mais. Para mim, o que acontece da página 68 a 71 é, neste livro, o ápice da escritura tão singular de Javier Marías. Não se trata de uma obra sobre o sentimento dos pais diante dos filhos, embora este também seja um “enamoramento”, mas esse pequeno trecho me capturou porque trata de algo que fala aos pais e às mães. E que poucas vezes foi tão bem dito.

Lembro-me do momento exato em que olhei para a minha filha e senti essa dor, que era a dor que eu achava que pudesse ser a dela ou que tinha a certeza de que um dia seria a dela. Tive minha filha aos 15 anos, o que não me deu tempo de esquecer das dores da infância ou da perplexidade da infância, como pode acontecer com aqueles que se tornam pais em idades consideradas mais recomendáveis. Eu me lembrava tanto da dor quanto da perplexidade, e aos 15 anos ainda não tinha feito o luto de nenhuma das duas.

Minha filha tinha uns três ou quatro anos e estava sentada no chão tentando brincar. Eu via o seu esforço e via o seu fracasso. Ou talvez apenas estivesse projetando nela o que sabia que seria seu embate mais ou menos eterno. Mas creio que não, acredito que já era angústia o que havia no seu rostinho redondo, já era perplexidade diante da aridez de alguns dias. Lembro-me de que, naquele momento, as lágrimas pingaram dos meus olhos, como de uma torneira mal fechada. Eu soube ali que jamais poderia tapar aquele buraco, que teria de testemunhar para sempre aquela luta íntima na qual cada um de nós está só. Sempre só. Eu assistia a ela desde já, tão pequena, tão frágil, tão confiante no meu poder ilusório, debatendo-se com a vida. E para sempre diante dela eu pingaria como uma torneira mal fechada. Era um momento silencioso entre nós – e as cartas já estavam dadas muito antes de nós.

Penso que todos os pais que se tornaram pais na modernidade sentem isso – consciente ou inconscientemente. E talvez tornar-se pai e tornar-se mãe se dá também na escolha do que fazer com esse sentimento. Tornar-se pai e mãe porque ser pai e mãe não é algo dado, algo que acontece a partir de um ato biológico, sempre mais explícito para as mulheres do que para os homens. Tampouco basta estar no lugar de pai e de mãe, para além dos laços biológicos. É preciso efetivamente ocupar esse lugar – tornar-se pai e mãe é um processo que não está nem dado nem garantido, exige um contínuo movimento de vir a ser, raramente fácil ou simples. 

É conhecida a dificuldade atual de exercer a função paterna e a função materna, porque é mesmo muito mais difícil ocupar um lugar em um mundo movediço, no qual a tradição já não determina o que devemos fazer acima de qualquer questionamento. E aqui não há nenhuma nostalgia das amarras da tradição, embora ela tenha o seu papel, apenas a constatação de que é previsível que nos percamos quando a pergunta de quem somos deixa de ter uma resposta óbvia. Embora tantos pais busquem nos infindáveis manuais as respostas que já não há tradição para dar, talvez esteja na literatura não as respostas, mas a complexidade das perguntas. Por paradoxal que pareça, me parece que tudo fica mais claro quando se complica.  

É pelo consumo – e aí possivelmente nunca antes como agora – que se tenta tapar esse buraco aberto no peito dos nossos filhos. Um objeto seguido de outro objeto, a ilusão de que algo foi preenchido com duração cada vez mais curta, o desejo pelo produto seguinte cada vez mais imperativo, a frustração sempre abissal entre um e outro. Com alguma imaginação, é possível enxergar um filme de zumbis nas cenas de shopping, pequenos arrastando grandes por corredores iluminados, em busca não de cabeças humanas, mas de mercadorias para triturar com dentes que não estão na boca.  

Mas não protegemos nossos filhos deste vazio, não há como protegê-los daquilo que é uma ausência que nos completa. Penso que este é o momento crucial da maternidade e da paternidade. Cada um de nós, que se sabe faltante, diante da falta que grita no filho. Quando me vi diante desse abismo, como a personagem de “Enamoramentos”, ela num momento muito diverso e muito mais limite do que o meu, lembro-me de me sentir envolta em melancolia. Eu soube ali, naquele instante prosaico em que minha pequena filha procurava por algo que talvez não pudesse ser encontrado em nenhum lugar além dela mesma, que eu haveria de conviver com uma falência dali em diante. Minha melancolia não se devia às dificuldades de uma maternidade precoce – mas à certeza de que proteger minha filha era uma missão desde sempre fracassada. E eu sabia porque eu lembrava – e esta talvez seja uma duvidosa vantagem de ser mãe adolescente.

Em outro livro, “Noites Azuis” (Nova Fronteira, 2012), este autobiográfico, Joan Didion descreve lindamente essa condição que só se tornaria clara para ela depois da morte da filha. Ao folhear um diário de Quintana, Joan descobriu que o medo da menina era “cair no vazio”. Em vez de aceitar este medo, conectar-se com ele, escutá-lo, a mãe escritora se pôs a corrigir a gramática. Impotente, mas sem aceitar a impotência, mesmo depois da tragédia, ela eliminou furiosamente as vírgulas em lugar errado no texto da adolescente. Quintana já tinha partido, mas ainda era tudo o que a mãe se sentia capaz de fazer diante do pavor da filha de “cair no vazio”.   

Esta mesma menina, muito antes, aos 5 anos, havia ligado para a clínica psiquiátrica mais famosa da região onde a família vivia para fazer uma pergunta devastadora: “O que devo fazer se estiver enlouquecendo”? Durante muitos anos Joan não conseguia compreender por que a filha temia que ela não pudesse protegê-la. Até entender que a pergunta estava errada. A pergunta correta era: “Como ela podia sequer imaginar que algum dia eu poderia tomar conta dela?”

Ao olhar para minha própria filha naquele momento em que eu sabia que a máquina do mundo se abria diante dela para mostrar seu enorme estômago vazio, lembro-me de que, por um momento, pensei em alcançar talvez um outro brinquedo ou lhe oferecer um chocolate (nos anos 80 ainda era possível ser considerada uma boa mãe mesmo dando doces a uma criança pequena, e não uma serial killer nutricional). Mas meu pensamento não virou gesto. Eu sabia que tudo o que eu podia fazer era me manter em silêncio. Que ser mãe, naquele momento, era ser capaz de vê-la debater-se com o vazio, testemunhar o início de seu longo embate vida adentro. E acho que ali, como deve acontecer com os pais e mães que percebem esse momento exato, uma fissura nova se abriu em mim. Esta que para sempre me faria pingar como uma torneira mal fechada.

“Que sentido tem cada um passar pelos mesmos desgostos e descobertas, mais ou menos eternamente?”, pergunta a personagem de “Enamoramentos”, diante da fragilidade dos filhos que, naquele momento, por uma circunstância trágica, lhe era insuportável. E a resposta talvez seja a de que não exista sentido. E exatamente por não existir, só podemos mostrar aos nossos filhos, porque isso é algo que se mostra, não que se diz, que a tarefa de uma vida humana, desde sempre e para sempre, é criar sentido onde não há nenhum. Inventar uma vida é a tarefa que faz de todos nós ficcionistas. E, em geral, uma vida que faz sentido é aquela em que os sentidos são construídos para serem perdidos mais adiante e recriados mais uma vez e sempre outra vez. É o vazio, afinal, que nos faz inventar uma vida humana – e não morrer antes da morte.

É o que fazemos como pais neste momento em que um filho descobre o vazio, um momento mais importante do que a primeira palavra ou o primeiro passo ou o primeiro dente, que também nos torna pais. É preciso aguentar. Saber aguentar e escutar a dor de um filho, sem tentar calar com coisas o que não pode ser calado com coisa alguma, é um ato profundo de amor. Um momento sem palavras em que nosso silêncio diz apenas que a tarefa de criar uma vida que faça sentido é dele, pessoal e intransferível. E tudo o que poderemos fazer é estar mais ou menos por perto, ainda que nada possamos fazer.

E um dia, talvez, receber uma carta/email na qual está escrito: “Mãe: o que eu sempre vi em você era uma pessoa que não desistia do próprio desejo. E que nunca deixou a vida matar a vida”.

Afinal, o que legamos a um filho é o nosso movimento em busca de sentido. E este não pode ser um arrastar-se de zumbi.


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Eliane Brum, 
jornalista, escritora 
e documentarista, 
escreve às segundas-feiras 

segunda-feira, 3 de dezembro de 2012

Máscara sem rosto


O filme estranho e a mulher que xingava. O que desejamos quando nos sentamos na poltrona do cinema?
por Elaine Brum

– O que faz você continuar?
 – A beleza do gesto.

Poderia ser “o que faz você continuar a viver?”. E “a beleza do gesto” é uma bela resposta. Mas o diálogo se passa entre criaturas bizarras, em uma situação bizarra. Dentro de uma limusine branca que percorre as ruas de Paris, um homem tem como trabalho encarnar vários personagens – não num palco, mas na vida real. Logo que entra no carro, ele recebe o script de sua próxima performance. Assim que esta termina, enquanto tira a maquiagem, a peruca, falsas cicatrizes e deformações, ele lê a descrição da próxima cena na qual será protagonista. E assim acontece por nove vezes em apenas um dia, no qual ele se torna, por exemplo, uma velha mendiga, um “monstro” dos esgotos, um assassino, um velho que se despede da sobrinha antes de morrer, um pai que busca a filha adolescente numa festa. Situações totalmente factíveis, às vezes, em outras improváveis (mas não impossíveis).  

É este o enredo de um filme estranho – Holy Motors, do francês Leos Carax, que acaba de estrear nos cinemas brasileiros. Tão estranho que até Paris, a cidade mais fotogênica do mundo, a mais palatável, charmant, cheia de joie de vivre, é agora também uma estranha. No Festival de Cannes, quando foi exibido, dizem que o filme chegou a ser aplaudido por 10 minutos. Na sessão em que eu o assisti com amigos, foi linchado.  

Uma mulher praticamente gritava, amaldiçoando os jornalistas que, com críticas elogiosas, a teriam induzido a entrar na sala de cinema com parte da família e alguns sacos de pipoca. Ela poderia ter comentado o seu desgosto apenas com os seus, num tom de voz mediano, mas ela tinha desgostado tanto que precisava compartilhar – ela queria apoio, adesão à sua revolta. Então xingou alto. Uma das pessoas que tinha ido ao cinema comigo – e achou o filme pretensioso ao extremo –, me disse: “Você não vai escrever sobre este filme, né?”. Eu perguntei: “Por que não?”. E meu amigo respondeu: “Porque alguém pode assistir por causa da tua coluna e depois vai te odiar”.  

A questão, com esse filme, ou pelo menos uma delas, é que não sabemos onde colocá-lo. O que ele está tentando fazer? O que ele quer nos dizer? Como classificá-lo? E quando pensamos que conseguimos entender/definir/ encaixotar, ele desconstrói nossas certezas na cena seguinte. Derruba tudo. E de novo estamos perdidos. E, alguns de nós, bastante incomodados com isso.  

Poderia ser uma metáfora sobre a existência de cada um, na medida em que a vida é isso, uma invenção de sentido que perdemos logo adiante – e de novo temos de criar sentido, só para perdê-lo na próxima virada de esquina. E de novo e de novo até sermos o velho que se despede da sobrinha para em seguida morrer. 

E ainda assim viver vale a pena, mesmo que marcados por cada máscara colada e depois arrancada de um rosto que nem sabemos se é o nosso. Como não sabemos qual é exatamente a face do homem na parte traseira da limusine, o homem exausto que se transforma tão rapidamente em outros, mas deixando para trás um resto do personagem anterior assinalado no corpo, ainda que seja como uma sobra de maquiagem. Este homem que é, afinal, um ator dentro e fora da tela. E, como ele, também nós podemos dizer que vale a pena continuar a viver por causa da “beleza do gesto”.

Quem é este homem que vive em outros?, nos perguntamos. Qual é a vida “real” deste homem que encena a vida real? A sua vida, não a de suas máscaras? Talvez não haja um rosto, só mais uma máscara. E logo outra mais atrás, mais funda, até o infinito. Talvez o sentido de sua vida seja emprestar sentido às existências que encena. Encena ou vive? Existe alguma diferença, afinal?  

Quem somos nós que vivemos como outros?, poderíamos facilmente trocar de sujeito. Qual é a nossa vida “real”? A nossa, não a de nossas máscaras? Será que existe em nós um rosto que não seja uma máscara? Encenamos ou vivemos? Há diferença, afinal?   

Somos como a filha que mente? “Você mentiria de novo se soubesse que eu não descobriria?”, pergunta o pai, em um dos poucos diálogos do filme. “Sim”, a menina responde. “Por quê?”, insiste o pai. “Porque agora nós estaríamos mais felizes”. Não é assim tantas vezes, com nossas tantas mentiras, menos para os outros, mais para nós mesmos? E qual é o nosso castigo? À filha, o pai diz: “Seu castigo é que você continuará sendo você”.  

Talvez sejamos também como a velha mendiga que diz: “Ninguém gosta de mim. Mesmo assim eu sigo existindo”. Nós também seguimos existindo, mesmo que quase ninguém veja a beleza do nosso gesto. 

Talvez este seja um filme sobre a poesia de T.S. Eliot, uma poesia que fala de nós: “Preparar um rosto para encontrar os rostos que encontramos”.  

Quando penso/sinto o que acabei de descrever, me emociono na poltrona do cinema. O encenador de vidas tinha acabado de chegar em mais uma casa que não era a dele, onde o esperava uma família que não era a dele. Mas a casa era dele exatamente porque jamais poderia ser, porque não haveria onde se sentir em casa, não haveria um lugar para habitar que lhe pertencesse. Porque sua condição, como também a nossa, era a de estranho, que estranhava e era estranhado. E ali, naquele momento, nós o estranhávamos e nos estranhávamos, ao mesmo tempo.  

E agora tudo se inverte: “Quem seríamos se tivéssemos sido outros? Não há mais tempo para recomeçar”.  

Eu me emociono, porque tanto a pergunta quanto a resposta me perseguem há bastante tempo. E então a cena seguinte é tão nonsense que desmancha os sentidos que eu havia construído até ali e, de novo, já não posso ter o conforto de um desamparo que mais ou menos conheço e com o qual me identifico. Sim, porque também o desamparo, quando é íntimo, nos conforta. E mais uma vez estou deslocada – estou perdida.    

“Em que espelho eu perdi a minha face?”, me indaga de dentro a poesia de Cecília Meireles. 

Alguns minutos depois o filme acaba – com talvez um dos piores finais de todos os tempos – e a mulher começa a gritar. Fora da tela, o que ela diz? Ela responsabiliza os críticos, que, na sua opinião, fizeram propaganda enganosa. Se tivesse um posto do Procon na saída, ela faria uma queixa. Tinham prometido a ela uma mercadoria, uma sensação, duas horas de fruição diante da tela – e tudo o que ela teve foi incômodo. E o pior, um incômodo que ela não conseguia definir, nem nomear.  

O diretor não havia entregado. Mas será que ele tinha prometido? Esta pergunta ela jamais faria. 

Estamos todos – e não só a consumidora do cinema, que acredita ter sido violada em seus direitos – acostumados a nos relacionarmos com tudo ou quase tudo pela lógica do consumo. A mulher apenas explicita isso ao não suportar o incômodo de ter recebido o que acredita ser mercadoria estragada. Se alguém vai ver um filme como os da saga “Crepúsculo”, sabe que terá o que foi buscar – entretenimento, para as adolescentes também enlevo, sonhos e suspiros, o que pode ser bem importante. Mas se vamos ver um filme de David Cronenberg, por exemplo, não é tão diferente . A relação, não a obra.  

Também esperamos que Cronenberg nos entregue algo que fomos buscar, mesmo que não seja, obviamente, entretenimento – mesmo que seja desconforto, estranheza, mal estar. Assim como sabemos o que esperar de um filme de Andrei Tarkovsky ou de Lars Von Trier. Mesmo que vamos assistir a um filme destes criadores para sermos desmontados, porque queremos e precisamos ser desmontados, esperamos receber o que fomos buscar. E, quando não nos entregam aquilo que esperamos, nos sentimos traídos. Apenas que alguns de nós demonstram a decepção de forma mais sofisticada que a mulher do cinema. 

Mas um filme não é um sapato nem uma TV de tela plana ou uma geladeira daquelas em que o gelo sai na porta. Quando nos sentamos diante da tela do cinema, num ritual que não combina com celulares ligados nem com conversas com a pessoa ao lado, estamos ali para nos entregarmos a uma experiência. É um momento de confiança, no qual nos ofertamos ao desconhecido. Estamos, literal e simbolicamente, no escuro. Durante mais ou menos duas horas algo vai acontecer, em grande medida inesperado. E então seremos novamente devolvidos à sala escura, mas agora transformados por aquilo que experimentamos. Não como a experiência de um sabor novo de sorvete, mas semelhante à experiência de mergulhar em um lago cuja profundidade desconhecemos. 

Talvez Holy Motors seja mesmo, como acredita meu amigo, que entende muito mais de cinema do que eu, um dos 10 filmes mais pretensiosos da história. E apenas isso. Mas muito tempo se passou desde a última vez em que me encontrei diante de um filme que me negou qualquer possibilidade de classificá-lo. E demoliu, uma a uma, todas as minhas conclusões. Ao final, eu fui deixada no escuro, grata por me sentir tão perdida. 

Não havia um certo ou errado entre a mulher que buscava meu apoio, gritando no corredor – e eu que não podia nem queria dá-lo, ainda sentada na poltrona. A diferença entre mim e a mulher que xingava os críticos e o diretor era a lógica que mediava o gesto de ir ao cinema. Para ela, haviam prometido e não entregaram. Para mim, não havia nada a entregar porque também não havia nenhuma promessa.

Eu queria dizer a ela: “Arte é aquilo que nos trai”. Em vez disso, continuei sentada com a minha máscara comportada. 

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Eliane Brum, 
jornalista, escritora 
e documentarista, 
escreve às segundas-feiras 

sábado, 24 de novembro de 2012

De qual ponto você olha a vida ?

por Raquel Carvalho

Tem gente que passa a vida de onde está olhando adiante. “Quando terminar isso, correrei atrás do meu sonho”. “Quando tal época chegar, farei o que realmente desejo”. “Quando tiver tempo livre, realizarei o projeto da minha vida.” Estou falando daqueles que vivem postergando o que acham que os fará felizes, com a desculpa de que “ainda não chegou a hora”. No futuro, esse desconhecido e incerto, está a prometida felicidade. Hoje é o lugar onde estão, com muita tolerância e sem muita presença, já que bom mesmo será o amanhã.

Há um outro tipo que passa os dias olhando para trás. No ensino médio têm saudade da primeira escola; na faculdade suspiram pelo cursinho; quando entram no mercado de trabalho morrem de vontade de “voltar apenas estudar”. Casados, suspiram pela solteirice. Divorciados, sentem faltam imensa da proteção da relação a dois. Como a professorinha de Ataulfo Alves, entoam o mantra “eu era feliz e não sabia” todos os dias e para qualquer coisa. Hoje é somente um espaço de saudosismo, lamentação e ausência. A única alegria é do que passou e não voltará jamais.

Não vale esquecer daqueles que se agarram ao hoje como a única alternativa. Alguns vivem sem passado. Ignoram o que já realizaram e começam cada manhã como se fosse uma batalha iniciada do zero; sem ganhos pregressos, sem habilidades já construídas, lutando pelo pão de cada dia com uma força descomunal, com os tanques na rua, como se toda a existência dependesse apenas daquele enorme esforço. Vivem exaustos, por óbvio. Há quem, preso ao hoje, não tem perspectiva de futuro. Esses precisam usufruir de todo o prazer agora, visto que não haverá amanhã. Querem todas as alternativas, para si, já: o melhor trabalho, todas as comidas, as festas mais animadas, todos os afetos simultâneos à disposição… Hedonistas, gulosos, insaciáveis. Passar os dias assim é igualmente cansativo. Por fim, aqueles que, presos ao hoje, ignoram passado e simultaneamente não vislumbram o futuro são os mais perigosos: para si mesmos e para o mundo. É verdadeiramente arriscado não enxergar o fio da história, embora a maioria ignore isso.

Penso que personagens tão bem caracterizados não são comuns. Caricaturas boas para textos literários, com suas exclusividades, mas raros na vida real, convenhamos. No fundo, todos temos um pouco de saudade do ontem, um punhado de sonhos para amanhã e encaramos o presente com a energia e o prazer possíveis. Às vezes há mais equilíbrio entre as variáveis, noutras menos e a vida segue com suas alternâncias razoáveis. Não consigo deixar de perceber, contudo, que em algumas fases da vida somos mais passado, em outras só futuro e de vez em quando conseguimos estar nesse lugar estranho que é o presente, aquele que, quando percebemos com o cérebro, já se foi há 3 segundos.

Quando estamos na adolescência (e integramos a parcela da sociedade cujos pais conseguem assegurar o mínimo da existência), existe hoje e, no máximo, a próxima festa da turma. A vida é longa, há dezenas de milhares de dias pela frente, nada justifica tanta preocupação como os educadores querem convencer, principalmente se considerarmos a avalanche de alegrias, sofrimentos, felicidade e dores que o agora propicia. Qualquer besteira pode ser superada. Praticamente tudo está por vir, erros abissais têm plena condição de serem corrigidos, praticamente nada tem consequências definitivas e nos tornamos super-heróis frágeis que erramos (muito), acertamos (pouco), amparados pela inexperiência. Desse ponto da vida, tudo está à frente e os olhos, o coração e a alma estão grudados no hoje. Intensamente. Exclusivamente. Exageradamente.

Na terceira idade, também existe o hoje e, no máximo, o amanhã. A vida é curta, você já viveu dezenas de milhares de dias que ficaram para trás, nada justifica tanta preocupação como os filhos e netos querem convencê-lo, principalmente se considerar as emoções suaves, sem grandes desesperos, dramas ou excessos, que o agora propicia. Nada parece ser besteira. Os maiores erros já foram cometidos, foi possível sobreviver a todos e se reinventar a cada um deles. Os acertos foram em bom número, principalmente depois de um determinado momento da vida adulta. Já deu para descobrir que nada é definitivo, nem quem você desconfia que seja. Continua errando, continua acertando, amparado por escolhas que lhe parecem fazer sentido a cada momento. Desse ponto da vida, melhor que os olhos não se voltem demais ao passado, nem se estendam demais para o futuro. Uma certa coerência atual está de bom tamanho e costuma ser suficiente para alguns momentos felizes.



Cá de mim, aproximo do que chamam “o meio da vida”. Não é mais possível arriscar alto e pagar para ver, sem condições efetivas de arcar com a fatura que cada escolha traz, mais à frente. Erros graves têm consequências sérias e duradouras. Qualquer um se reinventa até com certa facilidade de uma bobagem feita aos 20 anos; já aos 40, a coisa muda de figura. É preciso prestar atenção na máxima “plantar é escolha, colher não”; a semeadura feita por volta das quatro décadas de vida define em boa proporção como serão as décadas seguintes, uma parte bastante nobre da existência. Não dá mais para seguir fazendo o que não faz sentido, nem sendo o que não se é. Aos 40, já sabemos o que não queremos e desconfiamos do que de fato desejamos. Conhecemos um tanto bom das nossas fraquezas, habilidades, virtudes e dificuldades. Paramos de brigar com quem vamos nos tornando e passamos a nos administrar, com entrega. Descobrimos que a responsabilidade por dias felizes está em nossas mãos e começamos a inventar uma rotina de manter os pratos girando e dar conta do principal: a própria vida. Ainda não é possível dizer, com tranquilidade: “não dou conta”. Mesmo porque ainda temos força e um bocado de coragem. Escolhemos dar conta de múltiplas coisas, sonhar vários sonhos, cuidar de muitos queridos e correr atrás de importantes projetos. A decisão de fazê-lo não é um comportamento irresponsável de quem não tem noção. É mais uma habilidade com que ainda contamos fisicamente e que já adquirimos emocionalmente. Desconfio que seja bom aproveitar. Porque, como tudo na vida, vai passar. Estaremos, daqui há um tempo, mais livres para, sentindo, dizer simplesmente “ah, isso não, não me interessa…” ou “disso não sou capaz”, tomando um chá, em casa, em um fim de tarde qualquer. Deve ser bom experimentar essa sensação de pouca urgência e de menos demandas relevantes, incorporando os limites naturais que surgem e usufruindo a liberdade do vazio. Mas hoje não. Ainda não. Muito interessa. Muito desejamos. Muito realizamos. Muito sentimos. Muito fazemos. Muito sonhamos. Um bom ponto para se olhar e se viver a vida.

Meu conselho? Abram os olhos. E vejam. Olhar sem ver é coisa muito triste. Enxergar, olhando, a cada instante é trem bonito demais para se desperdiçar nesse mundão de meu Deus…
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A advogada mineira
Raquel Carvalho
escreve na coluna 7x7
da Revista Época.

terça-feira, 20 de novembro de 2012

A bicicleta

por Marcos Daniel


A vida é semelhante a um homem que tem uma bicicleta, e que dela depende para o seu sustento e o de sua amada família. 



E esse homem um dia recebe, de forma absolutamente inesperada, cento e noventa e três reais. E esse homem vai se deitar naquela noite pensando no que fazer com aquela enorme quantia. 

Deve comprar brinquedos e doces para as crianças ? Ou talvez um vestido para a mulher ? Quem sabe um sofá de segunda mão para a sala ? 

E esse homem adormece sonhando com o sorriso eufórico de seus filhos diante das guloseimas e brinquedos, com a alegria contida da esposa com o regalo inesperado e com a família reunida na sala, sentados no sofá diante da TV preto e branca.

E no dia seguinte lhe roubam a bicicleta. 

(- mdi -)

domingo, 18 de novembro de 2012

quinta-feira, 15 de novembro de 2012

Vivam os homens suaves


A influência gay modificou a cultura masculina para melhor
por Ivan Martins

As conversas masculinas raramente são generosas quando se trata dos gays. O comentário mais benigno que eu escuto desde criança é que os gays são legais porque deixam mais mulheres para o resto de nós. Apesar desse clichê, e de tantos outros igualmente bobos, minha impressão é que a influência gay no mundo masculino tem sido enorme nas últimas décadas. Enorme, subestimada e positiva.  

Desde o seu surgimento, nos anos 60, o movimento gay ajudou a redefinir a maneira como os homens agem e pensam a respeito de si mesmos. A existência pública de homens gays ampliou radicalmente o repertório masculino, arejando e diversificando a ideia de masculinidade. Antes da influência gay, o comportamento masculino estava confinado até a página 10 do livro de conduta. Quando os gays emergiram socialmente, eles ampliaram o livro até a página 100. Foi um movimento libertador para todo mundo, que ajudou a melhorar inclusive a vida dos casais, tornando-a menos estereotipada. 

Vamos por partes, para que eu me explique. 

O primeiro impacto óbvio da cultura gay no mundo masculino aconteceu no universo da aparência. Desde os anos 60, os homens se aproximaram dramaticamente das mulheres na maneira de se relacionar com a moda e com o corpo. Dêem uma olhada nas ruas: a garotada está cada vez mais andrógina, confundido os códigos masculinos e femininos. Você olha o garoto, ou a garota, e demora alguns segundos para definir o gênero daquela figura ambígua. E às vezes nem consegue. Essa ambiguidade é um dos resultados radicais da influência gay na aparência masculina. Mas não é o único. Perdeu-se no tempo a reação aos primeiros modismos trazidos pelos anos 60. Aqui no Brasil eram considerados “coisa de viado”. A marchinha de carnaval “Cabeleira do Zezé”, composta em 1963, ilustra bem a reação aos cabelos compridos, que voltavam a ser usados pelos homens desde o século XIX. “Será que ele é?”, perguntava a letra da marchinha.  

Pouco depois, nos anos 70, surgiram as bolsas a tiracolo, os sapatos de plataforma, as calças e camisas coloridas, os colares e pulseiras. Tudo isso pertencia, originalmente, ao universo feminino. Seu uso rotineiro pelos homens foi o equivalente cultural de um grande movimento transformista. Quarenta anos depois, homens e mulheres usam brincos, piercings, tatuagens de cores berrantes, sapatos vermelhos, calças cada vez mais justas e camisetas cada vez menores e mais decotadas. Há uma enorme convergência para o que eu chamaria de “campo gay” da moda. Mesmo os machos acima de qualquer suspeita vestem camisas agarradinhas que mulheres compram para eles nas melhores lojas da cidade. 

O resultado disso tudo é que você olha na rua e não distingue mais o gay do não gay. Além de se vestir de forma parecida, homens gays e heteros estão igualmente malhados, bem definidos, de corpo cuidado. A vaidade que antes era feminina e depois virou gay agora é descaradamente masculina. Há caras perfeitamente macho que depilam o peito, tiram a sobrancelha, cuidam das unhas, fazem mecha nos cabelos. São os metrosexuais, que viraram referência para homens de todas as idades. Um cidadão dos anos 50 que desembarcasse subitamente na Avenida Paulista acharia que metade dos homens se parece com mulher. Do ponto de vista dele, seríamos todos um pouco Laertes. 

No comportamento a mudança foi na mesma direção. O mundo masculino ficou gay. Os homens falam, andam e dançam de uma forma que seria inaceitável nos anos 50. A tendência geral é de feminização. Os heterossexuais ficaram mais suaves nos seus modos. Ou mais estridentes. Mais delicados, certamente, de um jeito que nossos pais e avós estranhariam. É comum que homens nascidos nos anos 60 conversem com caras 20 ou 30 anos mais novos e tenham a impressão de que eles são gays – pelo jeito de falar, pela linguagem corporal, por causa da atitude. A mudança de códigos foi muito rápida e muito profunda. A agressividade e a grosseria, que anos atrás eram a marca registrada de certa masculinidade, caíram em desuso. São mal vistas. Viraram quase um sinônimo de escrotidão. Há nisso uma influência benéfica da cultura gay. Ela modificou e amoleceu a cultura masculina, da mesma forma que o Gilberto Freyre diz que o Brasil fez com a cultura portuguesa – para melhor. 

Essas mudanças, evidentemente, chegaram ao campo dos sentimentos e da intimidade. 

Os homens agora choram sem vergonha nenhuma. Confessam seus sentimentos de um jeito até embaraçoso. Eles ficaram frágeis. As mulheres dizem, ironicamente, que estão com saudades daqueles tipos sisudos e caladões, de sentimentos inescrutáveis. Eles sumiram. Agora os homens são sensíveis. Falam pelos cotovelos e estão cheios de dúvidas e temores. Muitos dão excelentes donos de casa, tremendos pais, cozinheiros de primeira linha - e ainda são ótimos companheiros para fofocar e assistir à novela. Umas moças, enfim, mas com quem as mulheres podem transar gostosamente, uma vez que eles têm uma relação melhor com a própria cabeça e o próprio corpo. Aquele outro tipo, o macho à la Clint Eastwood, estava sufocando seus sentimentos mais viscerais, tinha coisas demais a reter e a esconder. Além de falhar na cama nas horas mais inesperadas, ele era uma panela de pressão pronta a explodir. Ou a ter um AVC ou um enfarte aos 40 anos. 

Aliás, eu acho que a importância do movimento gay vai além das questões pessoais. Ou de casais. Quando um sujeito ou uma mulher lutam pelo direito de fazer sexo com quem desejar – e de andar na rua vestido como quiser, abraçado a quem achar melhor – ele e ela estão lutando, intrinsecamente, pelo direito de todos serem o que são. Os ganhos pessoais e íntimos de alguns se traduz em ganho público para a comunidade inteira. Quando um grupo socialmente discriminado é reconhecido em seus direitos, quando ele ganha espaço para expressar seus gostos e sentimentos (desde que isso não aconteça em prejuízo dos outros), a sociedade inteira se torna um pouco mais livre. Há uma lógica inexorável de contágio que começa com a liberdade do indivíduo, avança para o seu grupo e se espalha para a sociedade toda – e para o mundo. Quando os sinos tocam de júbilo, eles também tocam por todos nós. Gays e não gays.
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Ivan Martins
é editor executivo
da Revista Época,
onde escreve às
quartas-feiras.

Genial !!!


quarta-feira, 14 de novembro de 2012

Fundo branco

por Marcos Daniel

Vários tons de branco se misturavam à súbita vertigem, o que faz o menino se lembrar da primeira vez em que subiu no primeiro poste da primeira grande linha de transmissão do Norte Novo, ainda nos anos 80. Será agora !? Aqui e agora!? Ele fecha os olhos e sente o ar entrar em seus pulmões, agora frágeis. O branco inunda tudo à sua volta e, como tem feito nos últimos 11 anos, ele examina cada fragmento de sua história, escrutinando cada gaveta, cada vírgula, cada suspiro, até parar, como sempre, no único detalhe que interessa, o único fio solto, a resposta que nunca houve para a pergunta que nunca teve a chance de entregar. (...)



E ele se perde e se reencontra e se perde novamente em meio a variadas matizes, sempre com o branco servindo de fundo para esse mosaico cores, melancolias, arrependimentos e a sempre onipresente culpa. É verdade que não foi muito longe, mas quantos dos seus colegas de faculdade não chegaram sequer até ali, naquele quarto, naquele tempo, naquela tristeza e naquela saudade que ao mesmo tempo enegreciam seus dias como um nanquim e preenchiam sua existência com um fel amargo que, dizem, seria melhor do que o vazio. Jamais saberia, pois se houve uma coisa que ele nunca foi é vazio, isso não senhor. Já nasceu cheio o menino, e nunca se permitiu esvaziar.


domingo, 11 de novembro de 2012

O que há em mim.


por Álvaro de Campos



O que há em mim é sobretudo cansaço
Não disto nem daquilo,
Nem sequer de tudo ou de nada:
Cansaço assim mesmo, ele mesmo,
Cansaço. 
A sutileza das sensações inúteis,
As paixões violentas por coisa nenhuma,
Os amores intensos por o suposto em alguém, 
Essas coisas todas
Essas e o que falta nelas eternamente;
Tudo isso faz um cansaço,
Este cansaço,
Cansaço. 

Há sem dúvida quem ame o infinito,
Há sem dúvida quem deseje o impossível,
Há sem dúvida quem não queira nada
Três tipos de idealistas, e eu nenhum deles:
Porque eu amo infinitamente o finito,
Porque eu desejo impossivelmente o possível,
Porque quero tudo, ou um pouco mais, se puder ser, 
Ou até se não puder ser... 

E o resultado?
Para eles a vida vivida ou sonhada, 
Para eles o sonho sonhado ou vivido,
Para eles a média entre tudo e nada, isto é, isto... 
Para mim só um grande, um profundo,
E, ah com que felicidade infecundo, cansaço, 
Um supremíssimo cansaço, 
Íssimno, íssimo, íssimo,
Cansaço...



quinta-feira, 8 de novembro de 2012

“Direitos humanos para humanos direitos”


por Matheus Pichonelli

Almeidinha era o sujeito inventado pelos amigos de faculdade para personalizar tudo o que não queríamos nos transformar ao longo dos anos. A projeção era a de um cidadão médio: resmungão em casa, satisfeito com o emprego na “firma” e à espera da aposentadoria para poder tomar banho, colocar pijama às quatro da tarde, assistir ao Datena e reclamar da janta preparada pela esposa. O Almeidinha é aquele sujeito capaz de rir de qualquer piada de português, negro, gay e loira. Que guarda revistas pornográficas no armário, baba nas pernas da vizinha desquitada (é assim que ele fala) mas implica quando a filha coloca um vestido mais curto. Que não perde a chance de dizer o quanto a esposa (ele chama de “patroa”) engordou desde o casamento.

O Almeidinha, para nosso espanto, está hoje em toda parte. Se espalha em proporção geométrica e, com os anos, se modernizou. O sujeito que montava no carro no fim de semana e levava a família para ir ao jardim zoológico dar pipoca aos macacos (apesar das placas de proibição) sucumbiu ao sinal dos tempos e aderiu à internet. Virou um militante das correntes de e-mail com alertas sobre o perigo comunista, as contas no exterior do ex-presidente, os planos do Congresso para acabar com o 13º salário. Depois foi para o Orkut. Depois para o Facebook. Ali encontrou os amigos da firma que todos os dias o lembram dos perigos de se viver num mundo sem valores familiares. O Almeidinha presta serviços humanitários ao compartilhar alarmes sobre privacidade na rede, homenagens a pessoas doentes e fotos de crianças deformadas. O Almeidinha também distribui bons dias aos amigos com piadas sobre o Verdão (“estude para o vestibular porque vai cair…hihihii”) e mensagens motivacionais. A favorita é aquela sobre amar as pessoas como se não houvesse amanhã, que ele jura ser do Cazuza mas chegou a ele como Caio Fernandes (sic) Abreu.

O Almeidinha gosta também de se posicionar sobre os assuntos que causam comoção. Para ele, a atual onda de violência em São Paulo só acontece porque os pobres, para ele potenciais criminosos (seja assassino ou ladrão de galinha) têm direitos demais. O Almeidinha tem um lema: “Direitos Humanos para Humanos Direitos”. Aliás, é ouvir essa expressão, que ele não sabe definir muito bem, e o Almeidinha boa praça e inofensivo da vizinhança se transforma. “Lógica da criminalidade”, “superlotação de presídios”, “sindicato do crime”, “enfrentamento”, “uso excessivo da força”, para ele, é conversa de intelectual. E se tem uma coisa que o Almeidinha detesta mais que o Lula ou o Mano Menezes (sempre nesta ordem) é intelectual. O Almeidinha tem pavor. Tivesse duas bombas eram dois endereços certos: a favela e a USP. A favela porque ele acredita no governador Sergio Cabral quando ele fala em fábrica de marginais. A USP porque está cansado de trabalhar para pagar a conta de gente que não tem nada a fazer a não ser promover greves, invasões, protestos e espalhar palavras difíceis. O Almeidinha vota no primeiro candidato que propuser esterilizar a fábrica de marginal e a construção de um estacionamento no lugar da universidade pública.

Uma metralhadora na mão do Almeidinha e não sobraria vagabundo na Terra. (O Almeidinha até fala baixo para não ser repreendido pela “patroa”, mas se alguém falar baixinho no ouvido dele que “Hitler não estava assim tão errado” ganha um amigo para o resto da vida).

A cólera, que o fazia acordar condenando o mundo pela manhã, está agora controlada graças aos remédios. O Almeidinha evoluiu muito desde então. Embora desconfiado, o Almeidinha anda numas, por exemplo, de que agora as coisas estão entrando nos eixos porque os políticos – para ele a representação de tudo o que o impediu de ter uma casa na praia – estão indo para a cadeia. Ele não entende uma palavra do que diz o tal do Joaquim Barbosa, mas já reservou espaço para um pôster do ministro do Supremo ao lado do cartaz do Luciano Huck (“cara bom, ajuda as pessoas”) e do Rafinha Bastos (“ele sim tem coragem de falar a verdade”). O Almeidinha não teve colegas negros na escola nem na faculdade, mas ele acha que o exemplo de Barbosa e do presidente Barack Obama é prova inequívoca de que o sistema de cotas é uma medida populista. É o que dizia o “meme” que ele espalhou no Facebook com o argumento de que, na escravidão, o tráfico de escravos tinha participação dos africanos. Por isso, quando o assunto encrespa, ele costuma recorrer ao “nada contra, até tenho amigos de cor (é assim que ele fala), mas muitos deles têm preconceitos contra eles mesmos”.

O Almeidinha costuma repetir também que os pobres é que não se ajudam. Vê o caso da empregada, que achou pouco ganhar vinte reais por dia para lavar suas cuecas e preferiu voltar a estudar. Culpa do Bolsa Família, ele diz, esse instrumento eleitoral que leva todos os nordestinos, descendentes de nordestinos e simpatizantes de nordestinos a votar com medo de perder a boquinha. Em tempo: o filho do Almeidinha tem quase 30 anos e nunca trabalhou. Falta de oportunidade, diz o Almeidinha, só porque o filho não tem pistolão. Vagabundo é outra coisa. Outra cor. Como o pai, o filho do Almeidinha detesta qualquer tipo de bolsa governamental. A bolsa-gasolina que recebe do pai, garante, é outra coisa. Não mexe com recurso público. (O Almeidinha não conta pra ninguém, mas liga todo dia, duas vezes por dia, para o primo de um conhecido instalado na prefeitura para saber se não tem uma boca de assessor para o filho em algum gabinete).

O filho do Almeidinha também é ativista virtual. Curte PlayStation, as sacadas do Willy Wonka, frases sobre erros de gramática do Enem, frases sobre o frio, sobre o que comer no almoço e sobre as bebedeiras com os moleques no fim de semana (segue a página de oito marcas de cerveja). Compartilha vídeos de propagandas de carro e fotos de mulheres barrigudas e sem dentes na praia. Riu até doer a barriga com a página das barangas. Detesta política – ele não passa um dia sem lembrar a eleição do Tiririca para dizer que só tem palhaço em Brasília. E se sente vingado toda vez que alguém do CQC faz “lero-lero” na frente do Congresso. Acha todos eles uns caras fodásticos (é assim que ele fala). Talvez até mais que o Arnaldo Jabor. Pensa em votar com nariz de palhaço na próxima eleição (pensa em fazer isso até que o voto deixe de ser obrigatório e ele possa aproveitar o domingo no videogame). Até lá, vai seguir destruindo placas e cavaletes que atrapalham suas andanças pela cidade.

Como o pai, o filho do Almeidinha tem respostas e certezas para tudo. Não viveu na ditadura, mas morre de saudade dos tempos em que as coisas funcionavam. Espera ansioso um plebiscito para introduzir de vez a pena de morte (a única solução para a malandragem) e reduzir a maioridade penal até o dia em que se poderá levar bebês de oito meses para a cadeia. Quer um plebiscito também para acabar com a Marcha das Vadias. O que é bonito, para ele, é para se ver. E se tocar. E ninguém ouve cantada se não provoca (a favorita dele é “hoje não é seu aniversário mas você está de parabéns, sua linda”. Fala isso com os amigos e sai em disparada no carro do pai. O filho do Almeidinha era “O” zoão da turma na facul).

Pai e filho estão cada vez mais parecidos. O pai já joga Playstation e o menino de 30 anos já fala sobre a decadência dos costumes. Para tudo têm uma sentença: “Ê, Brasil”. Almeidinha pai e Almeidinha filho têm admiração similar ao estilo civilizado de vida europeu. Não passam um dia sem dizer que a vida, deles e da humanidade em geral, seria melhor se o país fosse dividido entre o Brasil do Sul e o Brasil do Norte. Quando esse dia chegar, garantem, o Brasil enfim será o país do presente e não do futuro. Um país à imagem e semelhança de um Almeidinha.
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Publicado originalmente
na revista Carta Capital.


quarta-feira, 7 de novembro de 2012

E se ele não tem grana?


Por que muitas mulheres ainda hesitam em se juntar a homens sem dinheiro ?

Ponha-se no lugar da moça que eu conheço. Ela tem trinta e oito anos, gostaria de casar e ter filhos, mas o homem por quem está apaixonada não tem onde cair morto. É um sujeito culto, inteligente, idealista, sem a menor vocação para ganhar dinheiro. Mora num apartamento minúsculo e parece feliz em andar de ônibus e comer fora em lugares baratos, apesar de estar chegando aos 40 anos. A minha amiga não. 

O pai dela foi um provedor dedicado e um marido amoroso, que criou as filhas com desvelo, para viver e casar bem. Ela admite que, no fundo, gostaria de encontrar um homem prático e bem sucedido como o pai para começar sua própria família, mas, ao mesmo tempo, sente que ama o professor de olhos tristes. Se eles vierem a casar, está claro que viverão do salário dela, que é bom. Ela hesita. Diante da possibilidade de se tornar a provedora da casa, a primeira na história da sua família, ela morre de medo. Não era bem assim que começava a história do Príncipe Encantado. 

Eu imagino que nos próximos anos um número cada vez maior de mulheres vá enfrentar o mesmo dilema.

Elas trabalham duro, acabam ganhando bem e, lá adiante, quando a vida permite uma pausa para pensar em família & casamento, descobrem que nem sempre as circunstâncias a colocam diante de caras com a mesma história de sucesso econômico. O passo lógico seria abraçar a situação como ela se apresenta, fazer o que os homens fizeram por séculos, e ainda fazem, com absoluta naturalidade – tomar pra si a responsabilidade econômica pela pessoa que ama e pela família que vier a resultar dessa união.  

Mas, nessa hora, algo emperra na cabeça de algumas mulheres, como emperrou na cabeça da minha amiga. A inversão de papéis não lhes parece natural, e muito menos promissora. Elas puxam o freio de mão, ou pulam fora do relacionamento. Preferem o risco de ficar sozinhas a converter-se, voluntariamente, na cabeça econômica de um casal. 

Lembro de ter lido, tempos atrás, uma entrevista com jovens executivas que ilustra de forma extrema essa atitude. Todas elas, diante da pergunta sobre a possibilidade de se juntar a um homem com menos dinheiro, negaceavam. Uma delas dizia, com todas as letras, que não aceitaria um sujeito que houvesse conseguido menos do que ela na vida. A única medida de sucesso que ela parecia perceber era dinheiro, patrimônio, renda. Se o sujeito tivesse acumulado uma cultura imensa, se carregasse uma história de vida extraordinária, se fosse feliz, intenso, engraçado, brilhante ou sensual, nada disso parecia contar. Fiquei com a impressão de que a jovem executiva cogitava para si mesma uma fusão comercial, não uma parceria afetiva. Talvez antes de envolver-se com alguém ela requisitasse os serviços de uma empresa de consultoria... 

Ao me perguntar o que há por trás dessa atitude, eu percebo algumas coisas, nem todas elas frívolas. 

Segurança econômica talvez seja a principal. Quem já passou necessidade sabe que a constante falta de grana pode provocar situações terríveis no interior dos casais e das famílias. Dinheiro traz conforto, tranquilidade, a possibilidade de fazer coisas gostosas e oferecer aos filhos horizontes que os pais muitas vezes não tiveram. Por isso tudo, é bom ter em casa alguém com capacidade e disposição para ganhar dinheiro - mas por que essa pessoa precisa, necessariamente, ser o homem? 

Ao contrário do que previam alguns evolucionistas, a realidade tem demonstrando que as mulheres são perfeitamente capazes de prover o sustento da família. Segundo o IBGE apurou no censo de 2010, no Brasil 37% das casas brasileiras são mantidas exclusivamente por mulheres – e, naquelas em que vive um casal, em 46% dos casos são elas que ganham mais. Está claro, portanto, que as mulheres podem perfeitamente assumir a posição de mantenedoras principais. A de parceiras e co-responsáveis pelas despesas da casa elas assumiram faz tempo, junto com todas as tarefas domésticas que ainda sobram para elas.

Minha amiga, aquela do começo desta coluna, sabe que é capaz de ganhar dinheiro pelos dois, mas teme que o homem de quem ela gosta não seja bom marido ou bom exemplo como pai. O pai dela, afinal, era protetor, cuidava de tudo, criou em torno dela, das irmãs e da mãe uma rede de conforto e segurança econômica que o homem que ela ama, claramente, não é capaz de prover. Eu entendo o que ela sente, mas acho que talvez esteja confundindo coisas. Talvez esteja misturando a capacidade de oferecer conforto material com a capacidade de aglutinar uma família feliz.

O homem que não sabe ganhar dinheiro, mas tem seu trabalho e seus valores, pode ser o melhor marido e o melhor pai do mundo, assim como, através dos séculos, muitas da melhores mães e companheiras do mundo nunca ganharam um tostão furado. Um homem sem dinheiro pode ser amoroso, generoso, gentil com as pessoas e cuidadoso com as coisas. Pode ser ativo, espirituoso, cheio de vida, capaz de boas atitudes e bons sentimentos. Se não for vagabundo ou ressentido, pode ser um ótimo exemplo para os filhos – exemplo de que o dinheiro e o sucesso material não são a coisa mais importante da vida, exemplo de que há outros valores além dos que o dinheiro é capaz de comprar.

Talvez não haja muitas mulheres dispostas a bancar um homem desses, porém. A maioria talvez prefira a relação com um tipo convencional, com mais jeito de provedor. Esse negócio de ser o chefe econômico da casa, afinal, não é moleza. O estresse que vem com a posição é enorme, dura décadas, e no final rouba uns 10 anos de vida de quem o abraça. É um preço que os homens vêm pagando há muitas gerações. Eles escolhem a mulher com base apenas nos seus sentimentos e desejos, sabendo que terão de trabalhar duro, provavelmente pelo resto da vida, para cuidar da família que fizerem com ela. Não é uma opção fácil, como a minha amiga está percebendo, mas tem suas gratificações. Exige coragem, porém. No caso das mulheres, a coragem adicional de desafiar convenções e de romper com os preceitos da própria cabeça. 

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Ivan Martins
é editor executivo
da Revista Época,
onde escreve às
quartas-feiras.

domingo, 4 de novembro de 2012

Existe amizade entre homem e mulher sem segundas intenções?


Os homens acham que não...

Pesquisa realizada por pesquisadores americanos mostra que homens, 
intimamente, desejam mais as amigas do que elas os desejam.


Existe amizade desinteressada e sem segundas intenções amorosas entre homem e mulher? Uma pesquisa recente publicada no Journal of Social and Personal Relationships revela que homens e mulheres têm respostas diferentes para esta pergunta. Embora se digam "apenas amigos" de uma mulher, boa parte dos homens acredita que o termo vale só da boca para fora. Para eles, assim como para o personagem de Billy Crystal no filme Harry e Sally (1989), o sexo sempre está no meio do caminho. Já as mulheres tendem a acreditar que existe, sim, amizade desinteressada entre homem e mulher.

Coordenada por April Bleske-Rechek, do departamento de Psicologia da Universidade de Wisconsin-Eau Claire, a pesquisa reuniu 88 pares de amigos, um homem e uma mulher, todos eles alunos de uma universidade americana. As pessoas que participaram do estudo declararam não ter qualquer envolvimento amoroso e responderam, separadamente e de forma anônima, a um questionário para medir o nível de atração que sentiam um pelo outro. 

O tempo médio de amizade era de dois anos e o questionário pedia para que cada indivíduo enumerasse, de um a nove, a atração que sentia pelo amigo (ou amiga). Eles também tinham de informar se desejavam iniciar um relacionamento amoroso com seu par, entre outros itens.

Os homens se mostraram ligeiramente mais atraídos e propensos a iniciar uma relação amorosa. Também se mostraram mais confiantes que as mulheres quando questionados se achavam que suas amigas sentiam alguma atração por eles.

O estudo também revelou que a atual situação afetiva de suas amigas não é, na visão da maioria dos homens, um impedimento para uma relação amorosa. O desejo dos homens de iniciar uma relação afetiva com suas amigas não sofreu qualquer influência do fato de elas estarem ou não namorando. Já o interesse das mulheres caía se os rapazes estavam em um relacionamento sério.

A pesquisa certamente não indica que uma amizade sem segundas intenções entre um homem e uma mulher seja algo inimaginável. Mas sugere que os homens, ao menos secretamente, têm maiores dificuldades em lidar com a expressão "só amigos."





De acordo com os autores do estudo, os resultados mostram que a experiência de homens e mulheres em amizades com o sexo oposto pode estar condicionada a um processo evolutivo. Como o objetivo principal da população feminina ao longo da história evolutiva humana foi a proteção dos filhos, o que dependia de uma cuidadosa seleção na hora de encontrar um parceiro sexual, as mulheres tendem a valorizar mais as relações de longa duração.

Os homens que viveram há dezenas de milhares de anos, por outro lado, tinham pouco a perder e muito a ganhar na busca do maior número de parceiras possíveis, visando gerar mais descendentes. Hoje isso se reflete, dizem os autores, numa preferência que os homens modernos costumam ter por relacionamentos de curta duração. "Há evidências que os homens desejam um número maior de parceiras sexuais do que as mulheres e que eles fantasiam mais com isso", segundo os pesquisadores.

Essas tendências se refletiriam nos resultados da pesquisa, afirmam os autores. O fato de os níveis de atração não se alterarem entre os homens mesmo para colegas comprometidas em um relacionamento estável revela o desejo masculino mais ligado a relacionamentos de curta duração. "As mulheres, que costumam ter uma orientação para relacionamentos de longa duração mais forte, reportaram menos desejo de se envolverem com seus amigos quando estavam namorando", escreveram.

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fonte: Revista Veja.